terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A fome de Neide


É um fim de tarde de domingo quando Neide abre o forno e, antes de acomodar ali três avantajados pães de licuri, faz um desenho em cima de cada um, rápida e habilidosa. "É raro eu comprar pão. Não há padarias aqui perto e, bom, eu adoro preparar", diz. Em poucos minutos o cheiro já invade a sala, ou a cozinha, ou a horta. Difícil separar uma coisa da outra – tudo na pequenina e charmosa casa da nutricionista Neide Rigo parece fazer parte de um mesmo cômodo.

Há uma coleção de pilões enfileirada na sala de jantar, da qual ela destaca o primeiro de todos, herança de um tio-avô, feito de madeira. A tinta verde gasta, mas ainda marcante. No pescoço de Neide repousam em um fio de prata três minipanelas de cerâmica, compradas de um amigo gaúcho. A idéia de colocá-las em um colar, no entanto, foi dela. Vestígios da artista plástica que foi um dia? Não, quando decidiu largar a faculdade, conta, deixou uma pasta com todos os trabalhos na cadeira de um ônibus e desde então nunca mais ousou tocar pincéis.


Hoje, as horas de Neide são gastas na cozinha. Vez ou outra em um consultório, quando exerce a profissão de nutricionista, mas principalmente lá mesmo, onde ela fazia naquele domingo o pão que horas depois seria servido bem quente, com a manteiga derretida, preparando os apetites para a costela de porco, a couve, a canjiquinha, a batata doce e o bolinho de milho. "Os mineiros deixam a canjiquinha num ponto parecido com o do risoto e servem com a costela como se fosse um ensopado. Eu prefiro assim, mais sequinho. Outra forma de comer a couve é rasgá-la, aferventá-la e depois passá-la no azeite com alho. Ou então em uma sopa", ensina a cozinheira, que colheu as imponentes couves em sua própria horta.


A horta é recheada de folhas, raízes e frutos, alguns tão deliciosos como difíceis de ser encontrados em mercados de São Paulo, a exemplo do mangarito (um tipo de batata), da capiçoba, similar ao espinafre, ótima refogada, e do jambu, erva que amortece de leve os lábios, muita usada na cozinha amazonense. "Vou trazendo grãos e sementes de tudo quanto é canto. Já tentei catalogar, colocar plaquinhas, mas desisti, a gente vive correndo", conta Neide.


O tempo foi usado para intensificar as pesquisas sobre alimentos típicos do país, integrar o movimento Slow Food e postar as invencionices num blog, o Come-se. "As pessoas me perguntavam o que era tal comida e se eu não sabia não me contentava com isso. Saía pesquisando", diz. No rádio, música sertaneja de Mariano da Silva e Terrinha que o marido de Neide, o médico Marcos Nogueira, colocou pra tocar.

Abocanhar um bolinho de milho e encher o garfo de couve e canjiquinha ouvindo Saudade do Matão "dá uma saudade de uma coisa que não se sabe o que é, nem de onde vem", como escreveu o brasileiro João Guimarães Rosa. Escritor que Neide escolheu para resumir quem ela é, no perfil de seu blog. "Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa", escreveu ele, parafraseou ela. Por favor, Neide, continue desconfiando.

*Versão em português do texto publicado na centésima edição da revista americana Saveur, especial sobre cozinheiros pelo mundo.

Fotos: Marcelo Barabani

Obrigada, Neide, por ter aceitado nosso pedido apressado e aberto as portas de sua amorosa casa

Um comentário:

Neide Rigo disse...

Putz, Nana, fiquei emocionada. Nem sei o que dizer. Obrigadíssima, beijos e parabéns pelo blog. N