terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Estes meus sonhos


Sonhei que o nonno chegou bem perto de mim e com seus olhos de jacaré esperto ficou um tempão me observando, em silêncio. Talvez uns cinco minutos, mas como disse o sujeito destemido que foi até o diplomata João Guimarães Rosa questionar por que ele não voltava para a sua Cordisburgo, cinco calados minutos entre duas pessoas é uma eternidade.

― Giova, você carrega duas luas nos olhos. Por quê? Basta uma.

Acordei e vi que hoje a lua ingressa em meu signo.

Daqui a três dias o nonno completa 90 anos ao lado de sua mulher, em Curitiba. Eu gostaria de abraçá-lo muito forte, de um modo que pudesse sentir como o amo e apoio, e pedir para que ele continue levando estes dois sóis nos olhos.

Na foto, Giuseppe e o bisneto Guilherme, no último Natal

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Vení que te cuento


No segundo dia, senti aquela moleza boa de férias. Preguiça, risada solta, calor, calor, mas e daí? Não tinha brisa do mar para refrescar nem um quartinho branco com ar condicionado nem caipirosca gelada. Era o calor de um quarto apelidado de mini-ONU onde havia a doçura de uma israelense maternal cujo nome, Tsufit, significa beija-flor, e a delícia dos exagerados desatinos de uma enfermeira australiana. Era também o calor da primeira vez, a primeira vez nesta cidade que parece toda cor-de-rosa, que não é lá e não é ali, que não acolhe mas não expulsa, que tem gosto de doce de leite e, se fosse um passo, seria o ocho (e, neste ponto, dou razão ao confuso Sebastián: talvez um ocho restrictivo). Era o calor que caía das pernas peludas dos músicos da Ciudad Baigón na Milonga de Los Jueves. O sol impiedoso durante uma longa caminhada em Puerto (Miami) Madero em busca de um belo bife de chorizo. O calor do Gastón, garçom do Boliche de Roberto , o mais simpático de Buenos Aires. Ele elogiou o vestido dela, zombou o sotaque dos espanhóis, tentou falar "praia da Pipa" e ainda esqueceu de cobrar uma Quilmes providencial, tudo isso enquanto Osvaldo Peredo cantava "para qué fingir? Paciencia...La vida es así".

Voltei com poucas fotos, mas muitas molduras, uma linda blusa branca de renda, a dica de um site alucinante de tango , a certeza de que preciso mudar o plano do celular e mais animada para dançar, embora possivelmente não flamenco. Algumas confirmações: os argentinos não são calorosos como a funcionária do Museo Nacional de Belas Artes, San Telmo é mesmo meu canto favorito, a escolha da casa de câmbio faz diferença, o tomatito loco é o presente porteño mais bacana e o mundo todo se rendeu às Havaianas (não os culpo, também eu não resisti).

Y la vida es así, sigo creendo porque así dime mi corazón.

Y um obrigada imenso à amiga querida que volta com mais flores para se enfeitar.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Liberdade


As duas usavam o mesmo vestido correto, mas com estampas diferentes. Óculos escuros. Olhavam vez ou outra, de canto de olho, a garota com os cabelos bagunçados e o vestido de algodão curto, fazendo que ia levantar. A garota não queria parecer deselegante, mas não conseguia parar de admirar aquelas duas senhorinhas. O mesmo tamanho, baixas e magras, o mesmo cabelo, a mesma roupa. Acendou um cigarro, apertou Bento e Antônio e teve, de súbito, uma saudade morna da avó. Uma vontade do abraço de veludo da avó, da delicadeza com que pega em suas mãos, a chama de Jo e conta sobre uma lã argentina. O ônibus encosta e ela acomoda-se atrás das duas senhorinhas enquanto uma freira devidamente trajada senta-se ao seu lado, embora tivesse preferido não ter companhia, ela notou. O ônibus parte e a freira já dorme pesado, a cabeça escorregando nos ombros da garota. Pensa em sinalizar que de alguma forma está invadindo seu espaço mas, afinal, que raio de sentido há nisso? Teve vontade de abraçar a freira de cabelo cor de chumbo. Cheia de vontades naquela tarde em que a presença teve de se vestir de ausência.
- Está demorando para chegar, menina. Você sabe que bairro é esse?
Sabe. A freira diz baixinho onde mora.
- Desculpe, Liberdade?
- Não, Piedade.
O sol de rachar ilumina o rosto da freira, as senhoras namoram o mar e a garota segue mais firme pelo chão de pedras.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Reino do hoje


Fantasmas de negros assustados
dançam no porão do Solar do Unhão

Nachos e cerveja gelada.

Fantasmas de negras sonhadoras
dançam
no brilho dos teus olhos

A maré afoga a tragédia;

Por que Jorge Ben sabe de cor
a cantiga de Mariam
se ele nunca foi a África?

Seis horas da tarde
e os meninos da escola do Olodum
já começam a descer a ladeira.
Hora de tirar o abadá

*O título emprestei da Clara de Inês Pedrosa