quarta-feira, 26 de agosto de 2009

muito prazer, frango


Pequenas coisas que acalmam. Ouvir minha mãe descrevendo como eram vistosas as galinhas de uma fazenda orgânica. Mas eram sedosas, cheias de frescor, coloridas, eram bonitas demais, ela repetia, abrindo um sorriso largo como uma melancia cortada ao meio. E foi uma doce coincidência: quando entrevistei o escritor e fotógrafo Tim Porter, autor de Organic Marin, livro sobre fazendeiros da região considerada pioneira na produção de comida orgânica nos EUA, ele contou a seguinte história. "No fim do projeto, eu fui visitar um rancho de frangos orgânicos. Ficava localizado numa colina ao norte do condado de Marin. A dona e eu andamos até o topo da colina onde havia uma centena deles, em um viveiro. Eu tirei algumas fotos, mas queria chegar mais perto. 'Espera', ela disse, seu nome era Liz Cunningham, 'eles virão para cá logo, eles são muito curiosos'. Eu nunca achei que frangos fossem curiosos, e nem que possuíssem qualquer tipo de capacidade intelectual, mas Liz estava certa. Em minutos, os frangos nos cercaram, chegando bem perto e ocasionalmente bicando nossos pés (graças a Deus, pensei, não estou usando sandálias). Mesmo assim, eu ainda não estava satisfeito com as fotos e percebi que o que estava ruim era o ângulo. Eu sou muito alto, os frangos são muito baixos. Deitei no chão. Os frangos começaram a andar em cima de mim, dos meus pés até minha cabeça. Desta posição, fiz algumas das fotos que as pessoas mais amam. A lição que aprendi: bons fotógrafos se tornam ainda melhores quando enxergam tudo a partir do mesmo ponto de vista do objeto – mesmo se o objeto for um frango."

Foto: Tim Porter

terça-feira, 25 de agosto de 2009

ana esmeralda


A escola de flamenco Ana Esmeralda parece um labirinto, um porão, tem cheiro de mofo, pinta de decadente. As salas são conjugadas, o que faz com que você tenha de interromper uma aula para poder chegar até a porta e ir embora. Numa das estantes, estavam 5 garrafas de vinho tinto vazias. "Qué es eso?", pergunta Ana Esmeralda, apontando as botellas. "É, nós tomamos na festa, no fim de semana", responde uma professora. As duas dão risada. Ana Esmeralda é espanhola e ficou no Brasil porque se apaixonou por um homem. Estrelou o filme Quem Matou Anabela, achei foto no arquivo do jornal. Os sapatos para alunos novatos estão maltratadinhos, gastos. Cabeça erguida, ombro pra baixo, olha a cabeça, olha a cabeça. "Não é pra virar o corpo, não precisa exagerar nos movimentos. É tudo muito contido". É pra pisar com força? Ela pensa um segundo e nega. "Força, não. Com firmeza, com jeito. Mas forte". No espelho, meus ombros até que pareceram bonitos. Engraçada a minha cara séria. Não pude deixar de lembrar do dia em que a Poppy, de Simplesmente Feliz, faz uma aula de flamenco e a professora pisa no chão e grita: "My space! Pisem e repitam comigo: my space!". A escola de flamenco Ana Esmeralda é provavelmente a mais pé sujo de São Paulo. Mas tem a alma galvanizadora que as lustrosas academias vilolimpicanas jamais irão entender. É pra lá que eu vou.

Ilustração: Brian M. Viveros, dica do 100 mililitros

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

olha


Andando hoje no velho Dyd vi duas vezes o mesmo homem carregando um cachorrão de pelúcia, na Tietê e na Itu. E depois, quase um minuto em cima do outro, vi um homem sentado em um dos pontos de ônibus da Av. Sumaré agarrado a um pônei pink de pelúcia, agarrado mesmo, parecia criança. Fazia o tipo de frio que pede uma xícara pequena de café com leite quente (mas eu não quero queimar a língua). À tarde, uma amiga mandou o link com uma foto de um homem vestido de tartaruga e o comentário: "Olha! Isso me fez sorrir". Lembrei do e-mail de outra amiga, aquela que tem a clareza de dia de sol em fiorde. "A criança, quando fica doente, não fica se perguntando o que causou aquilo, só sente. Sente medo, dor e chora. Expressa o que está sentindo e logo depois está feliz de novo, rindo e correndo", escreveu. Em vez de ficar em pé, muito natural, eu só conseguia ver tudo de cabeça para baixo, como se em cambalhota em câmera lenta. Por que é que a gente não sai sempre com um pelúcia embaixo do braço? Todo mundo tem o seu. Na cama, na estante ou no baú velhote.

Ilustração: Ann Tarantino

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

teto


se assim for, eu digo se assim for —
tu do meu coração, manda-me um recado;
para que possa ir até ele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
E então voltarei o rosto, e ouvirei um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.

Trecho de A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento, no livrodepoemas, de e.e.cummings

*Foto de Cuauhtemoc Suarez

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

foz do iguaçu no céu




Minha irmãzinha tirou as fotos mais extraordinárias que já vi da janelinha do avião. Um ensaio de Bianca Tucci.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

de las tripas, corazón


O médico tinha alguma coisa do avô que passou fulgurante em sua infância. Dele, coleciona uma lã multicolorida de lembranças, mas todas emprestadas da mãe. De sua mesmo, tem três: o jeito irritante como brincava de roubar seu nariz na frente do portão verde desgastado, um brilhante jogo de frescobol na Praia das Cigarras em que bateram o recorde familiar e o choro misturado com o cheiro da bola de tênis na pracinha. Mas o médico lembrava o avô, ele examinou seu coração e disse: menina, não se preocupe com essas coisas, não, sabe por quê? Porque isso é passageiro. A mãe disse filha, a gente pode fazer o que quiser da vida, a gente pode fumar um cigarro às 7 da manhã como o vovô ou a gente pode caminhar no parque, e não existe coisa certa e coisa errada. Um dentista certa vez também lembrou o avô por causa do jeito como tratou um atraso na consulta e um problema de canal. O cardiologista e o dentista tinham olhos azuis, mas não pode ser só por isso. "Vai sorrindo", pediu o médico na despedida, e ficou embaraçado quando ela lhe apertou a mão forte em agradecimento dos mais desesperados. Já sei, eles lembram o avô porque são ásperos como uma lixa de açúcar.

Ilustração: Cadjoo

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

solte os cachorros


Alguém anda sarapintando as sextas-feiras. Numa dessas desses últimos tempos, me chamam na portaria mostrando uma caixinha do Sedex. Dentro tem uma camiseta bacanérrima e mais mineira impossível, estampada assim: “O que é uai? Uai é uai, uai!”. Um livro de prosa da Adélia Prado (caramba, bem no dia em que me emprestaram Poesia Reunida, duas Adélias no mesmo dia é muita sorte para uma pessoa só), um simpático enxuto guia de cidades mineiras e uma das mais belas cartas que recebi em toda a minha vida. Por quê? Quem? Porque existem motoqueiros que esbarram em seu espelho e engatam marcha ré para arrumá-lo, porque existe uma cozinheira que gasta seus únicos 10 mil francos para servir Veuve Clicquot 1860 para as filhas de um deão. Porque existem pessoas que rejeitam toda e qualquer mesquinharia, que pegam tudo de vil e pequeno que humanamente pensam e sentem e deixam de lado, como a criança que escolhe esse brinquedo e aquele não. Porque tudo é uma questão de escolha e é muito fácil culpar os outros pelos seus tropeços, como se só existissem rasteiras, pegar sombra azul emprestada e passar nas pálpebras para esconder as próprias olheiras. Mas existem pessoas que transformam vaidade em edadiav e dão risada, imitando a menina do chapéu amarelo de Chico Buarque. Dersus Uzalas perdidos na cidade, eu encontrei um. Mara, com quem conversei não mais que umas cinco vezes por não mais que uns cinco minutos durante uns poucos dias no Caribe, viu a camiseta, pensou em mim, escreveu pedindo meu endereço, trocamos algumas palavras, ficou com vontade de mandar mais coisas, foi até o correio e mandou. “Solte os cachorros, mas sempre com sabedoria e bom humor” escreveu na dedicatória, a dedicatória que a vida já rabiscava no meu bloco (e a coleira já deslizando das mãos).

*esse post é dedicado à mineira de Sabará Elemara Duarte, e a todas as suas crianças que ela diz alimentar com leitinho quando na verdade alimenta com palavras mágicas, todos os dias.