sexta-feira, 30 de julho de 2010

sabonete, mulheres, coturnos brancos


“Eu preferia o outro sabonete”. Imagino uma mulher bonita, com cabelos lisos bagunçados escorridos, olheiras leves e um dos dentes incisivos ligeiramente tortos. Na frente dela, um cara de coturno branco que a conquistou naquela festa naquele dia, ela dançando sozinha de shortinhos azul turquesa, um presente da avó que ela ganhou e pensou nunca, mas nunca vou usar isso. “Eu preferia o outro sabonete”. Ela chora, ele blasé não entende nada, mas é o fim, com essa frase chega ao fim o romance ideal, ela sempre odiou números pares mesmo, e romances, e shorts de cores idiotas. Quem tem um coturno branco?

Imagino uma mulher não muito bonita, mas muito jovem. Acorda com os cabelos lisos ainda úmidos. Pelada, na cama, observa seus pés. Se espreguiça fazendo os movimentos de um tatu-bola. O cara de coturno branco a espia e ela sabe. Sorri pra ele, levanta, vai até o banheiro, observa seus olhos inchados, as olheiras parecendo traços de delineador de tão marcadas. Lembra do sabonete de lavanda italiano que não comprou na farmácia, um naco gigante pesado e caro. Porra, 20 conto? Lava o rosto com o resto de Dove e diz, sem que ele pudesse ouvir (mas, se ouvisse, compreenderia imediatamente, ele sempre sabe).“Eu preferia o outro sabonete”.

Entrei no banheiro e ela, como de costume, estava lá. Só que rompeu a habitual mudez de quem passa o dia no banheiro ouvindo barulhos esquisitos, e disse: “Eu preferia o outro sabonete”. Tentou consertar a máquina, sem sucesso. Fechou a porta e foi almoçar, o relógio do computador marcava 10h30 da última sexta de julho.

Foto: Memo Vasquez

terça-feira, 27 de julho de 2010

segunda-feira, 26 de julho de 2010

nossa floresta sacrílega


eu caminho seguindo
o sol
sonhando saídas definitivas da
cidade-sucata

isto é possível
num dia de
visceral beleza
quando o vento
feiticeiro
tocar o navio pirata
da alma
a quilômetros de alegria


(Roberto Piva)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

dos milagres


Sentado em cima de uma mesa de jaqueira em São Miguel dos Milagres, Alagoas, sorria tanto, tanto (chegava a rir, mas sem barulho. uma alegria muda). Os cabelos cacheados jogados de um lado só, totalmente sem vergonha. Olhava fixamente para a câmera com olhos, boca, nariz e queixo. "Como ela é linda!", eu repetia, e clicava. Com calma e doçura, sem tirar o sorriso do rosto, lá pelo décimo clique, falou: "Eu sou menino". Ei, menino, que belo ensinamento de como é que se faz.

terça-feira, 20 de julho de 2010

o mary


Até nos momentos felizes - quando consegue fisgar o vizinho grego Poulopoulos, quando finaliza um projeto na universidade e se destaca no Olimpo dos óculos tortos - Mary não parece feliz. É como se ela tivesse passado a vida toda em frente ao espelho passando fio dental. Max sua igual lata de cerveja em Jericoacoara ao ser indagado pela garotinha sobre o que é o amor. E, para compensar, come compulsivamente pães recheados de barras de chocolate (isso porque nunca provou pão francês mergulhado em leite condensado). Lá pelas tantas, no cinema, ele virou e disse: “reparou que praticamente tudo é branco e preto, menos o pompom vermelho que ela deu pra ele?”. Como eu pude não reparar? Pelo trailer, eu imaginava que o Max era um escritor famoso e que a Mary resolveu escrever pra ele porque gostava de seus livros, essas histórias hollywoodianas que a gente cria na própria cabeça. Quando Max começou a listar suas ocupações, eu pensei é agora, é agora que ele vai dizer “foi então que aconteceu uma coisa fantástica e escrevi um livro”. Nada. Pior é que acontece mesmo uma coisa fantástica na vida de Max – daquelas Top Five no trenzinho de nossas listas de Natal. O que assusta em Max & Mary não é a excentricidade dos personagens, é a assustadora familiaridade.
Eu não tinha reparado no pompom vermelho. Que merda é essa, a gente se acostuma a uma vida em preto e branco?

sexta-feira, 16 de julho de 2010

telefone sem fio


"Cecilia: repasse para a Ju.
Marcela: repasse para a Paulinha.
Lu: repasse para a Flavinha.
Mariana, para tia Heloisa."

terça-feira, 13 de julho de 2010

sobre a copa


Eu ficava emocionada em dia de jogo quando saía do meu hotel em Copacabana e via os velhinhos de Lacoste amarela e as velhinhas com bolsa amarela, todo mundo, inclusive a calçada e os postes de luz, vestido de Brasil. Mas vendo o time jogar aquele futebol truncado e feio e nervoso, pensava: que se dane o título, nós não merecemos. A racionalidade derretia quando o povo de repente pulava junto em uma sucaria qualquer de Ipanema, gritando Gol. Ou quando pediam para tirar da Globo e o garçom negava: “Mas é o Galvão!”. Quando a velhinha de bengala que avisou o garçom “às 4 quero meu café na mesa”, disse: “Não precisa ganhar de muito, só 1 já tá bom”. Então nessa copa, vista mais lá do que aqui, vivi esse dilema ordinário de ponderar e delirar ao mesmo tempo. Um dia, ele me disse despretensiosamente, assim, cortando uma fatia de bolo, que a seleção apresentou uma campanha medíocre na Copa de 94. Fiquei pasma. Não! A Copa de 94 foi a mais linda de todas, foi a vitória mais brilhante! Tínhamos Bebeto, Romário, Dunga, Taffarel. Tinha a promoção das tampinhas das garrafas de vidro de Coca-cola, que vinham com nomes de três países – quem pegasse a tampinha com os finalistas ganhava sei lá o que, e a gente bebia refrigerante como camelo bebe água. Eram os álbuns com as figurinhas mal coladas tortas, ainda usávamos cola Pritt ou Tenaz. No way, baby, a Copa de 94 foi minha copa do choro! Certo, assumo silenciosamente que é bem provável que tenha sido de fato uma vitória meia boca, mas que valeu a pena, só por deixar milhões de crianças enlouquecidas. Se o Brasil ganhar, pensei, ouvindo meus priminhos gritando do outro lado do telefone, para eles o time de 2010 vai ser sempre uma porcelana Limoges. E tem também esses garotos jogando bola na praia do Vidigal, numa manhã de julho. Não são lindos, esses garotos?

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O relojoeiro do Leblon


Antes de mais nada, meio encolhida, preciso dizer: não me lembro de seu nome.
Só sei que há 40 anos conserta relógios numa loja na rua General Artigas, no Leblon, quase esquina com a avenida Delfim Moreira. Ou seja: um pedaço cascudo do Rio de Janeiro (ainda mais depois que as Menininhas do Leblon roubaram a atenção da Garota de Ipanema).
Alguma coisa me chama e atravesso a rua para olhar a vitrine.
Entre velhos Rolex, Casios vintage e Nikes Huru lá está São João Batista. Nos fundos de uma lata de coca-cola, cercado de bandeirinhas coloridas e protegido por uma fogueira. Colada nas costas da lata, sua oração. Não dá tempo de perguntar de quem é aquilo, ele já chega e diz: “Gostou? Eu que fiz. Tem outros aqui na loja, vem”, aponta a prateleira.
Fico tonta de alegria, aqueles altarzinhos lado a lado, um mais lindo que o outro. “Olha esse, é o Cristo Redentor, e esse, Iemanjá”. Tem São Bento? É o meu santo, e nunca tem São Bento. Tinha.
Católico, um dia abriu uma lata de coca-cola com um estilete e botou a imagem de um santo dentro. O pessoal pirou, faz um pra mim? Fez, mas achou que podia fazer melhor: comprou cola quente e tinta.
São João vai com fogueira, Nossa Senhora, com flores, Santo Antônio leva aliança.
Quem quiser enfeita a estante, quem quiser usa a tampa da latinha e pendura o altar na parede.
“A Regina Casé uma vez veio e levou uns 10. Mas eu não gosto muito quando uma pessoa sai com um monte. Cada um é cada um, sabe? Eu me apego”.
Separo São João e São Bento, não tenho cacife, mas não dá. Nem pergunto se tem Santa Teresinha, céus, minha avó adoraria um desses.
Vou procurar um banco, o pagamento é em cash - os santos não fazem parte do acervo da loja, o dono cedeu um espaço ao funcionário porque não é um burocrata.
Pego o troco.
Chega um cliente e ele começa a trabalhar. Fico parada, ouvindo as marteladas precisas encaixarem os pinos no relógio e olhando os santos, hipnotizada como uma formiga diante de um pote de açúcar. “Ele é relojoeiro”, diz o chefe, meus olhos presos no homem. “Não existe mais ninguém que faça o que ele faz, do jeito que ele faz”.