terça-feira, 23 de novembro de 2010

são as águas de lindoia


O recepcionista reconheceu o sobrenome. "seu avô já não ficou hospedado aqui?". sim, meu avô, josé. não pareceu reconhecer o nome. giuseppe, talvez? "sim!"
engraçado como algumas lembranças se cristalizam na gente como se não passássemos todos de um monte de açúcar na panela, derretendo até virar caramelo
não via muito mais meu nonno nos últimos anos, mas penso nele com uma frequência e lembro de alguns detalhes tão pequenos
sinto uma saudade que não dói, e me pergunto se algum dia ouvirei de novo o seu "djova", verei de novo o olhar do meu pai aconchegado pela segurança de ser incondicionalmente amado por alguém
estou há dias cercada de velhinhos o tempo todo e eles me parecem um bocado cansados, com seus banhos tomados e óculos escuros
hoje um senhor ficou parado na frente do hotel, olhando para a praça como se estivesse olhando para o fundo de uma garrafa de vidro
quando será que perdemos a alegria e nos concentramos só em amarrar os sapatos?
a alegria do nonno só foi aspirada no fim e, mesmo assim - isso não me sai da cabeça - minutos antes de morrer ele pediu a uma das filhas:
me traz um chocolate?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

let's go


"para onde
nos atrai
o azul?"


João Guimarães Rosa

terça-feira, 9 de novembro de 2010

mãos na estrada


América gosta tanto de viajar que queria ter se casado com um caminhoneiro.
Ela, o irmão e a mãe já foram juntos para Poços de Caldas, Goiás, Águas de Lindoia. "Agora minha irmã cismou que quer ir pra Piracicaba, por causa da música do Sérgio Reis: 'O rio de Piracicaba vai jogar água pra fora...'", diz a manicure. A moça ao lado pintando as unhas, depois de muita vontade guardada, pela primeira vez de azul. América acha os hotéis indicados nos guias de turismo muito caros, por isso vai ela mesma buscar onde ficar, batendo de porta em porta. "Já visitei com meu irmão o Sesc de Poços de Caldas, mas achamos que tinha muita escada, fomos parar numa pousada que é uma casinha, os quartos dão para um quintal maravilhoso, e R$ 23 a diária!". Gosta tanto de dormir fora de casa que não é raro sair do Morumbi, onde mora, e pernoitar em um hotel em outro canto da cidade. Tipo: se tem um compromisso no Ipiranga, procura algo por ali e aproveita o tempo que passaria no trânsito para conhecer melhor o bairro. Dessa maneira, jura que já encontrou uma porção de ótimos hotéis. Sua próxima meta é achar um lugar bacana (e baratinho) no centro de São Paulo. "Outro dia fui lá dar uma olhada, mas não gostei de nada...quero dormir no centro em um sábado para acordar cedinho no dia seguinte e participar da caminhada, sabe o que é a caminhada, né?".

Foto: Lila Pink

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

o almoço de segunda


"Será que agora o calor veio para ficar?", eu pensei alto, o vento quente batendo no rosto. O taxista respondeu um "não sei" seco. Na hora de pagar a corrida de R$ 5,90, tirei a nota de R$ 50 e ele a recusou. "Você não tem trocado?". Não tenho, mas o senhor, que é motorista de táxi, deveria ter, certo? Sacou o maço de notas do bolso: "Eu tenho, mas não quero te dar". Surpreendentemente calma, eu sugeri: "Sem problemas, eu desço até o restaurante e troco". Ele encerrou a história com um enxotamento verbal: "Não, não vou te esperar trocar. Desce do carro, não quero esses seis reais". Ainda insisti: "Mas, espera, qual o nome do senhor? Posso levar o dinheiro no seu ponto e...". Nessa hora eu já estava fora do carro, pensando no tanto de coisas que eu poderia dizer, mas só consegui mirá-lo de soslaio e expressar: "Meu deus, leve a vida mais leve...". Ele finalizou: "Por que você não traz uma nota de 100 da próxima vez?".
Entrei no bistrô me sentindo a banana da xepa. Fui ao banheiro, senti uma dor na bexiga e minha cabeça tentava entender o que tinha acontecido, por que, o que eu deveria ter falado para aquele homem, eu agi certo? Olhei meu rosto cansado e suado no espelho e retoquei a maquiagem: posso ficar nessa energia ruim, ou posso seguir. Eu quero seguir. Antigamente tremia por dentro e corava por fora nessas horas, hoje parece que sou transportada para um espaço zen.
Saí do banheiro e, esperando meu colega de almoço chegar, parei em frente a uma lousa e meio por inércia comecei a ler o texto que tinham escrito ali. Era mais ou menos assim: "Todas as manhãs, um homem era maltratado pelos funcionários da padaria do bairro. Em vez de se enfurecer, dirigia-se a todos com uma educação de lorde e distribuía sorrisos. Um dia, um amigo questionou sua atitude e ele explicou: 'eu não vou deixar que eles decidam meu estado de espírito".

Foto: Ellen von Unwerth

O tocador de pife


Sentado na cadeira de balanço na sala do casarão, o tocador de pife Alfredo Miranda observa em silêncio a mulher, Terezinha, vender doces e licores. Ela, que nunca tira um olho dele, senta no braço de sua poltrona e contempla-o com ternura, lamentando que esteja doente. “Não reconhece mais os amigos e os filhos. Mas...” – leva o pife à boca de Alfredo, que em um sopro inicia uma canção - “...ele não esquece as músicas”. Daí em diante, para regozijo dos presentes, a visita ganha trilha sonora – Alfredo engrena no pife e toca uma sucessão de canções com vigor de criança. Nascido em 1916 em Viçosa do Ceará (interior do Ceará, a uns 150 km da turística vila de Jericoacoara), cresceu na roça e foi apresentado à flauta por um amigo curumim. Aos seis anos, fez sua primeira composição, um chorinho. Quando a saúde não estava debilitada, Alfredo costumava fabricar pifes a partir da taboca, uma espécie de bambu – supersticioso, sempre nos dias de lua cheia, em meses sem “r”. Além de canções próprias, a mulher conta que adorava reproduzir as músicas dos anos 40, a “era de ouro” do rádio. Na hora da despedida, que Terezinha quer adiar ao máximo, uma inesperada surpresa: na sacola, além de licores e biscoitos caseiros, o CD Ao pife, por Alfredo Miranda.

*Íntegra do texto publicado no Guia Brasil 2011

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

da série respostas deliciosas

— Como você faz pra tirar o cheiro de alho da mão? Eu passo detergente, sabonete líquido, álcool em gel...nada funciona, fico o dia todo lembrando que piquei alho. Hem, amor, como você faz?
— Ah, eu só não penso nisso.

(traduzindo: como ele não pensa no cheiro, ele não sente o cheiro. e não é que faz sentido?)

presenciando


Porque veio com uma boa reserva de paciência e alegria
deus, enquanto bosquejava, decidiu:
Não entenderá os números e nada que não se possa dobrar ou amassar.
Terá dificuldade em executar atividades básicas como recortar em linha reta ou abrir uma lata de leite condensado.
Na mesma proporção em que conseguirá sonhar, vai cismar (pois quem vive no delírio não aceita que um cacho de uva é somente um cacho de uva).
Vai ter de aprender a diferença entre sentir com a mente e sentir profundamente.
Vai, muitas vezes, se achar o pior dos demônios: "A freira de olhos baixos esperava o ônibus, sua roupa semicanônica, nem curta nem comprida, bege-e-branca, estúrdio véu na cabeça. Glória sentiu raiva da freira. Por penitência, puxou conversa com ela (...)".
Vai morrer diariamente em sonhos, filmes, beijos, silêncios, conversas e cigarros. "O que era a morte? Às vezes o corriqueiro, às vezes o absoluto terrível."
Num dia, olhando os sapatos, vai concluir que "a vida é servidão". E vai gostar ainda mais da frase porque sabe que tem algo nela que ainda não entende bem.
Noutro, porém, olhando as unhas vermelhas dos pés brotando dos novos sapatos verdes, vai concluir que a vida às vezes tem a medida exata de um abraço.
Não vai querer ser rica, não vai querer ser famosa
Vai querer apenas o que também queria Glória: "Comer comendo, namorar namorando e até mesmo colar colando, confundida ela própria com os objetos de suas ações". Em uma palavra (que no gerúndio fica ainda mais bonita): presença.

*Texto com citações de Cacos para um Vitral, de Adélia Prado.

Imagem: Betsy Walton