domingo, 21 de agosto de 2011

Uma história das irmãs de General Carneiro


Era aos domingos. Atravessávamos como dois gafanhotos o portão de ferro da casa do Morumbi e antes de cumprimentar o nonno e a nonna corríamos para os braços delas. Neri & Maria. Dormiam na parte de baixo da casa, em uma área de serviço porém agradável, com varanda e alguma luminosidade.

Cheiro de ameixa, leite, velhinhas com adoráveis vestidos florido-apagados de domingos nublados. Era puro amor. Nos abraçavam forte, eu e meu irmão, lembro do rosto sorridente da Neri, tinha cabelos belos e ásperos ainda não totalmente grisalhos apesar da avançada idade. Parecia-me que me olhar era sua maior felicidade, e choro sem dor e sorrindo muito grata por essa forma de amor que aprendi com ela.

Religiosamente nos entregavam balinhas de leite da Kopenhagen e R$ 20 para cada um, era uma fortuna, sustentou nossos álbuns de figurinha e nossas sessões de cinemas com casquinhas de chocolate do Mc (eu preferia as mistas, mas achava que era uma pessoa do chocolate e precisava ser coerente). Não me lembro de um domingo em que saímos de lá sem bala e sem mesada.

Preparavam os melhores pratos do mundo, uma lasanha de berinjela que era receita da nonna e a tia Tica disse que vai ensinar-me, polpetas que à época eram porpetas, o 'erre' bem puxado de italiano da Mooca. Depois do almoço elas vinham nos trazer no jardim, enquanto procurávamos tatus-bolas para experimentos infantis, leite condensado com granulado de brigadeiro, em xícaras de café.

Sotaque caipira, com os 'erres' carregados e dieta de 'esses'. Só hoje é que fui saber onde nasceram as irmãs: em General Carneiro, uma das cidades mais frias do Paraná.

Gostavam de praguejar, e eu, seguindo o exemplo de minha mãe, procurava palavras com efeito reverso. Neri se queixava da saúde, eu respondia "Neri, você ainda vai me ver entrar na igreja!". Ela engrandecia, alegrava, e perguntava "será que eu vou?" acreditando muito que sim. Lembrando da promessa, Maria, já com seus 90 anos, já sem Neri ao seu lado, já morando na casa de Itu, me bordou um enxoval. Como dizer que eu já não pensava em me casar? Não disse. Beijei-lhe a testa, acariciei sua mão com dedinhos tortos e veias saltadas e sentenciei: é lindo. A vida se encarregou de explicar o resto.

No mês passado, poucos dias antes de partir, Maria falou à amiga Neusa que se viesse a faltar, as fotos eram dela. As fotos as quais se referia eram fotos minhas, do Marco e do Lucas que tinha penduradas na parede do quarto desde os anos de Morumbi. Mudava de casa, mas não mudava as fotos de lugar. Pequena Nana de chapelinho branco com uma mosca na aba e expressão invocada.

Maria considerava aquelas fotos seu maior patrimônio. Chorei. Chorei apertando suas mãos no hospital de Itu porque sei que muitas vezes lhe faltei. Pelo menos deu tempo de dizer, olhando fundo em seus olhos sem óculos: o amor que eu tenho por você e pela Neri é amor mesmo que tenho pela nonna, está me ouvindo, Maria?

Em Jerusalém, acenderei duas velas no centro da igreja mais bonita para aquelas que nunca me faltaram; me ensinaram o valor das balas de leite e do dinheiro, e deixaram para sempre meus domingos encantados.

foto: daqui

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