segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Uma cena: estou subindo a rampa do aeroporto de Vitória, levando um carrinho com dois caixotes de papelão com quase uma dúzia de panelas de barro. Bem em frente, colada em mim de um jeito que era preciso vigiar os tornozelos, uma mulher leva um carrinho com duas crianças se divertindo muito. Está claro, minhas panelas são meus filhos, pensei. Sorri. Me pareceu certo.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Bate e volta

Dois dias em território capixaba, onde tinha pisado pela primeira e única vez há 11 anos, em janeiro do ano 2000. Praia da Barra, em Marataízes. Uma menina de regata rosa e branca tie-dye e coragem suficiente para dizer à amiga, as duas sentadas na beirada do pier balançando as pernas: não quero ficar aqui 15 dias, vou embora. E fui. E então que numa quarta-feira qualquer (não qualquer, véspera de Primavera e, segundo o colunista de vinhos, o dia mais bonito do ano em Buenos Aires, quando as pessoas distribuem flores & taças de champanhe). Voltei ao Espírito Santo. Conheci o belíssimo Vale do Mulembá, verde e molhado; apertei o pé escalando raízes do manguezal para fotografar de perto a casca do mangue vermelho se soltando com o macete; fui paciente com um taxista muito lesado. E de novo e como sempre saí da cidade pensando em como se pode viver longe do mar. Não precisa nem ser bonito (não era). Não precisa nem fazer calor (melhor que não). Almoçando moqueca olhando o mar, com o vento refrescando os ombros, senti como se estivesse num lugar exótico e improvável, mas era só Vitória. E pensar que eu já passei quase um mês  em Alagoas e outro no Ceará e passei por lugares realmente exóticos e improváveis. Mas o coração batia em ritmo de urgência. Almoçar olhando o mar em Vitória, não, não tinha urgência, ou talvez tivesse, mas eu não tinha, eu cada vez menos tenho. Só uma. Não tem aquele poema do Eugenio de Andrade? (...) é urgente permanecer.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

carta para Deborah

Que andei todos os dias pelas vielas da Cidade Velha e não me cansei, que ficaria ali mais pelo menos 10 dias perdida entre aqueles bairros com separações virtuais. Que acho que foto nenhuma consegue transmitir pra gente o que é aquilo, o que é estar naquele redemoinho, naquele miolo onde você toma um café árabe forte como um rojão e descobre como pode ser na mesma proporção exaustivo e excitante negociar o preço de uma mercadoria.

Onde você vê um bebê de quipá comendo Cheetos, senhoras muçulmanas pedindo esmola na entrada do Muro das Lamentações e moças judias com seus 25 anos e três filhos a tiracolo, judeus ortodoxos que não te cruzam o olhar vestindo preto sem derramar uma gota de suor.

E de repente parece só mais um comerciante que te dirige um olhar sedutor, pergunta de que país você é e diz: "Entre, você gostou desse? Por favor entre, aqui dentro tem muito mais". Mas por alguma sorte entramos, e lá estava a pessoa mais extraordinária que conheceríamos em 9 dias de Jerusalém, o joalheiro marroquino Omar que, entre muitas outras coisas, tem em sua loja uma cisterna de 2 mil anos e nos deu uma aula sobre jóias & cordialidade.

O Monte das Oliveiras tem gosto de primeiro, foi a primeira vez que vi azeitonas no pé e entendi que essa viagem não seria um passeio.

Boiamos no Mar Morto e ficamos embasbacados com a existência de beduínos em todo o trecho da desértica estrada. Comprei lama e um creme espetacular de vanila com sais minerais do Mar Morto onde não está escrito em lugar algum da embalagem Dead Sea, mas como contestar em hebraico?

Passeamos pela Galileia, conhecemos as ruínas de Kafarnaum, a casa de Pedro, a Igreja do Sermão da Montanha. Na Igreja das Bodas, em Cana (Caná) quis interromper um casamento para que o padre nos abençoasse, mas ele foi mais sensato - como quase sempre - e me impediu. Acabamos acendendo uma vela, levando três microvasos de cerâmica e um lenço transparente e brilhante que enrolei na cabeça e foi a foto que minha mãe mais gostou.

O Santo Sepulcro é pesado, mas foi lá que um padre ortodoxo me benzeu e benzeu o santinho do meu pai trazido dali há mais de uma década, pela nonna.

Belém é autêntica, alto astral, maravilhosa e palestina. Me ajoelhei e rezei no canto onde teria nascido Jesus, rimos da loja fajuta Stars&Bucks, onde não me perdoo por não termos tomado um café, e ficamos assustadoramente 1 hora para deixar o muro que separa a cidade de Israel. Acho que nunca vou esquecer: ele indo buscar sorvetes de frutas enquanto eu fotografava, do ônibus, o céu com mil bandeirinhas da Palestina. Naquele momento, ficou claro: estávamos em outro país.

No Muro das Lamentações, me arrepiei todas as vezes e chorei todas as vezes. Deixei bilhetes, ganhei uma saia para cobrir os joelhos, cumpri o ritual, observei Roberto Carlos rezando e sendo bajulado pelo rabino mor dos lugares sagrados de Jerusalém.

Nos últimos dias, num impulso pegamos um ônibus para Tel Aviv e caímos, por acaso (atrás do cara que ia arrumar as rosas do Roberto) numa espécie de Ceagesp de Tel Aviv, o shukri Ha'Carmel. Lá vi as maiores tâmaras, comemos o melhor sanduíche de cordeiro e a limonada fajuta mais providencial.

Que mar tem Tel Aviv, que mercado foda de antiguidades tem Yafo!
Trouxemos um velho rádio de tape para o fusca e um móbile enferrujado com bons presságios.

O presente mais legal para nossa casa foi o tapete da loja de Omar.
Num futuro, talvez as lâmpadas mágicas de Aladim.
Abacaxi acha que o (outro) tapete novo, o do corredor, é dela e se esconde embaixo dele para nos dar tremendos sustos.
O Menino Jesus repousa em uma manjedoura de concha na estante nova.
O doce telefonema da minha avó dizendo que os presentes mais especiais foram os de Jerusalém.
A melhor comida foi o arroz amarelo com cordeiro no iogurte e salada de pepinos do Abu Taher.
Ganhei um colar de âmbar que não tirei do pescoço e no último dia fui saber o que ele significa (e se fosse mais discreta guardava pra mim como um segredo egoísta).
Toda vez que eu me ensaboo com o sabonete de romã da loja de temperos eu imagino a jovem mulher muçulmana que voltou à loja de temperos só para buscá-lo se ensaboando também.
Minha casa está cheirando a zaatar até hoje.
Eu não sei mesmo explicar por que, mas de alguma forma voltei de Jerusalém mais em paz.

Dois arrependimentos: deixei de comprar um lenço de seda com pavões costurados em miçanga, e disso me arrependi já de volta ao quarto de hotel.
Não comi as tâmaras medjool mais bonitas de Israel.
Mas como me disse um guia turístico em Cambará do Sul, no Rio Grande do Sul, vendo minha frustração frente à neblina teimosa cobrindo os cânions, quando algo assim acontece é a cidade te chamando de volta algum dia.

E minha correntinha de S. Bento caiu minutos antes de eu deixar a cidade, minha proteção, mas ele me conformou dizendo que se caiu é porque tinha carga pesada nela e tinha que ficar ali.
É nessas horas que todo desentendimento se dissolve como açúcar em água e eu entendo o que uma vez vi num filme bobo: num álbum de fotos, estamos sempre sorridentes. Mas são os momentos difíceis que ligam uma foto e a outra e a outra.

Termino como Roberto Carlos começou aquele show que me encheu de alegria de menina: a Jerusalém, minha reverência.

foto: claudia schembri