quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Chillout


Um dia, nesse fim de ano, eu fiz aquela habitual e automática perguntinha pra Pó: "Você promete?". Ela me surpreendeu ao mandar essa, em vez da habitual resposta sim, prometo: "Não, não prometo. Mas eu acredito muito".
Me lembrei dessa conversa por dias a fio.
E de repente percebi que parei de fazer promessas a mim mesma e às pessoas.
Tirei do jogo a Promessa e a substituí por uma jogadora mais preparada, a Confiança.
Promessa e Confiança não jogam no mesmo time, é preciso abrir mão de uma para ter a outra.
Quando você promete é como se construísse um muro que não te deixa ver o que tem ali mais à frente, pois você já determinou que sua casa vai ser nesse lugar e desse tamanho. Se fecha para o mais lindo, que é a surpresa, que é o chalé azul na frente da praia dorminhoca, e eu não posso desejar nada mais que isso para 2013, e é pra lá que eu vou.


Foto: Eu, Abacaxi e Jovelina estamos aqui para desejar a vocês em 2013... o astral dessa foto!



domingo, 23 de dezembro de 2012

Diálogo de sábado


- Você acha que uma hora vem a resposta?
- Nós já não pedimos? Aspargos com ovos e huevo-loco-blablablá.
(...)
- O que? Não, não isso...
Eu falava de vida, ele falava de estômago. Mas eu penso, foi uma engenhosa confusão, pois ele acabou respondendo a questão: nós já pedimos.


foto: Jovelina, por Giuliana Vallone

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

E-mail de pai


Assunto: Ainda bem...

Que o mundo não acabou...Eba eba eba!!!




terça-feira, 18 de dezembro de 2012

pipoca


Neste instante a vida só faz sentido por causa da cor dos olhos da menina filha da faxineira da livraria
E o executivo grita ao telefone: a princípio não, indiretamente sim


foto: Jota

recortes


Puxa, adorei isso! Tem muito mais aqui.


Me lembrou um hábito que eu tinha quando criança: inventar histórias a partir de recortes de revistas. Era um prazer da mesma árvore do prazer que era tomar sorvete de groselha, só que diferente.
Não me lembro de fazer esforço para pensar nas histórias, de haver um trabalho mental exaustivo, era mais uma esguichada de sentimentos e ideias.
Foi um hábito derivado das charges do Cebolinha que a professora do pré-primário colava no caderno, tínhamos que dar continuidade a elas. Eu sempre me empolgava e escrevia além da conta,  até a última linha da página, a letra ficando miudinha pra fazer caber, e às vezes sendo preciso até remendar papel com grampeador pra poder contar o fim.
Teve uma vez, desconfio que seja uma memória fresca mais por conta da quantidade de vezes que minha mãe já me contou esse caso do que pela real importância do caso, mas teve uma vez que eu tava na casa da tia Célia, era época de Natal. Recortei uma árvore de Natal de alguma revista e escrevi um conto de Natal.
Minha mãe ficou particularmente impressionada porque eu tinha acabado de ser alfabetizada, e fiz isso de maneira espontânea num dia preguiçoso. Coisa de mãe.
Se eu procurar bem, ainda acho esse conto.
Porque a gigante mala jeans com Legos, que delícia que era abri-la, não temos mais como achar. A tia Célia comentou anteontem: por onde andará a mala jeans?



segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Vendo juntas


Da série grandes sintonias. O post "Sexta-feira, 14" ainda estava pelando quando a amiga Tata me mandou este, publicado quase simultaneamente (visto que meu post deveria ter sido publicado na sexta passada). Começa do mesmo jeito que o meu, "hoje eu vi...". Ela me escreveu:
"Vc viu esse post? Porque eu acabo de ler o seu agora e achei uma fofura independente de como aconteceu, se foi coincidência eu vou achar ainda mais legal. Fiquei feliz, conexão linda"
O post é o "Hoje eu vi", do Rascunho de passarinho, blog novo e imperdível na área, que aproveito para recomendar aqui. Só posso justificar assim: você vai querer ler os rascunhos de uma passarinha que vê bebês vestidos de bala de morango e acha sorveterias com sabor de leite materno.
A Tata autorizou, reproduzo o post aqui:

Hoje eu vi…
Por Thaís Caramico
Comprei um bloquinho pra escrever todos os dias o que eu via pelas ruas. Foi logo que cheguei na cidade e a brincadeira durou pouco mais de dois meses. Não é que encontrei o dito cujo depois de desmontar a casa?
Hoje eu vi…
Um relógio no céu / Guarda com um urso na cabeça / Patos na lagoa / Sorveteria que vende sabor leite materno / Dois casais dos anos 1920 / Feijão com molho de tomate / Vitrine de suspiros gigantes / Um homem dirigindo um triciclo / Uma ponte metálica que balança / Teatro com o nome de Shakespeare / Festival de marmitas / Pessoas sacando dinheiro na rua / Cinco tabloides diferentes / Miniatura da rainha, de dar corda / Labirinto com oásis no centro / Velhinhos jogando bocha no jardim / Navio que trazia chá da China / Churrasco no parque / Pessoas com travesseiros no churrasco / Esquilo fugindo do cachorro / Uma pequena Veneza / Mágicos nas ruas / Feira sem pastel e caldo de cana / O maior órgão do mundo / Protesto de dois mil ciclistas / Cenoura pra comer com homos / Uma família inteira de punks / Barraca de amendoim doce / Um cara igual ao Oil Man / Um disco antigo do Kinks / Mark E. Smith em carne e osso / Leite de coco no curry / Patinezada / Chá verde com ginseng doce / Bolo de gengibre / Roupa por quilo / Linha que divide o mundo em dois hemisférios / Gente educada no metrô e empurra-empurra pra entrar no avião / O futuro / Bebê vestido de bala de morango.

Sexta-feira, 14



Hoje eu vi...

Uma Barbie very hot deixada em cima de extintores de incêndio em uma borracharia

Um alfaiate usando uma pulseira de tomate, daqueles tomates de tecido picados por agulhas

No alfaiate, um velhinho escolhendo o tom de bege de sua nova camisa

e um homem andando de suspensório e sem camisa, com a barrigona saliente.

Uma menina cheirando sabonete de pitanga.

Na loja de cacarecos natalinos, uma mulher dizendo "eu adoro esses Papais Noéis que dançam. Quanto mais maluco, melhor"

Uma velhinha com problema de audição que escutou R$ 49 em vez e R$ 79, e quando recebeu R$ 20 de troco e reclamou, o vendedor japonês agiu com rara cordialidade: "Ah, a senhora entendeu R$ 49? Puxa, me desculpe".

Um casal de velhinhos este da foto, e eu enganei a todos e fotografei de um ângulo como se estivessem caminhando juntos. Na verdade ele está ligeiramente atrás dela, apoiando-se nela como se apoiam no farol os cegos em seus guias. É como naquela frase do Richard Avedon que a gente leu na exposição no Metropolitan de Nova York, "no instante em que você pega a câmera você já começa a mentir - ou a dizer sua própria verdade".

Um jovem senhor fazendo a barba na barbearia do Empanadas, ao meio-dia. Quem faz a barba num dia quente como esse?

...

Eu gosto muito desse clima malemolente de Natal, quando o mundo está se movendo em uma câmera lenta legal.
Isto é, se você também desacelera.
É bom sair a pé com uma desculpa qualquer, "vou mandar ajustar as saias"
E depois eu caminho, às vezes me arrependo porque caminho demais e a volta vai ser quente e longa; às vezes compro bugigangas muito úteis, como a toalha de mesa de abobrinha e berinjela que me custou R$ 10; às vezes paro para comer uma esfiha e céus como está fria.
É sempre bom.
Tenho feito isso em muitas manhãs de dezembro e estou considerando esse o meu maior presente de Natal.

Teve um dia em que dispensei o táxi até a casa da minha avó e fui a pé da Vila Madalena até o Jardim Europa. Passei pela praça que agora vou chamar de Praça dos Pug e que surpresa encontrar ali o seu Mariano, o sorveteiro da minha infância.
"Casou, teve filhos? E o menino, casou?". Fiquei sabendo que o Seu Mariano vende sorvetes há 39 anos; que a praça da vovó, a Morungaba, já não tem mais crianças por isso ficar lá não compensa; e tomei um picolé de coco.

Sei também que, além de fazer esse trajeto mais vezes, não vou mais ir a outro costureiro que não seja o seu Brumatti.
Com as sobras da saia longa branca, ele vai fazer uma borboleta pra eu pendurar no cabelo.
Eu pedi. Ele silenciou e disse: "eu faço, mas só depois do Natal. Primeiro, os ajustes".
Justo, primeiro os ajustes, depois as borboletas.

Há quanto tempo será que o seu Brumatti trabalha na Teodoro Sampaio? Será que depois de um tempo os lugares começam a se adequar a seus inquilinos, e não o contrário? A vista que se tem a partir da janela de seu Brumatti é a de um emaranhando de fios de eletricidade tão bem-alinhavados que a sensação é a de que o ateliê de costura está mais lá fora que lá dentro.


Trilha sonora desse post: Los caminos de la vida, Los Diablitos


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

da Lucinha e da Soninha


Sete tentativas depois, ele saiu. O bolo fofinho de banana, sabor que eu procurei insone fôrma atrás de fôrma durante dez dias. Conforme eu misturava os ingredientes, o cheiro da massa de banana ia alegremente me torturando e eu pensava "esse vai, impossível não dar certo, com esse cheiro...". O que acontecia: a massa pesava, parecia que nem tinha farinha ali, que era só banana.
Tentei duas vezes no domingo, depois mais uma no dia do aniversário dele (essa falha foi a mais dolorida, cantar parabéns com as velinhas em cima de petit gateau de restaurante, por deus).
Dei um tempo, li muitas receitas na internet, pedi ajuda para a fada madrinha da cozinha Márcia.
Fiz bolo de coco, de chocolate e de fubá.
Acalmei? Não. Eu estava obcecada demais pelas bananas para desistir delas.
Fiz mais um. Erro. Mais dois no fim de semana, para os cunhados, imagina se eu falho? Falhei.
E aí eu tive uma ideia muito da genial, só que com uma semana de atraso, de ligar pra bendita boleira da minha infância. Soninha, a cozinheira do sítio da tia Carlota, em Tatuí.
O bolo da Soninha nem chegava à sala, acabava mesmo na cozinha, a gente entrava e ia pegando os pedaços direto do tabuleiro, um seguido do outro. Cada criança devia comer, por cima, uns quatro. Achei que a Soninha não ia saber precisar as medidas, mas qual foi, não só sabia dizer como deu dicas preciosas do tipo "você mede o óleo no copo de requeijão, o açúcar num copo um pouco menor, pro bolo não ficar muito doce" e "mistura bem os líquidos com a farinha e o açúcar, eu bato na mão mas se for preciso usa a batedeira".
Bananas compradas no sacolão, sétima tentativa. Em meu rústico entendimento considerei um bom sinal a massa ter ficado mais melecada, como se de bolinho de chuva. Arrisquei e coloquei umas rodelinhas de banana por cima de tudo. Não tive medo de não dar certo. Afinal, após seis receitas malogradas, o erro perde peso de jaca e ganha peso de amora.
Um bom presságio foi também minha gata bebê Jovelina ter se postado em frente ao fogão e permanecido ali de butuca por alguns minutos. Ela não fez isso com os outros bolos!
Quando enfiei o garfo e vi que o bolo tinha ficado fofinho...foi como ter cruzado a linha de chegada após uma longa maratona.
Descobri ainda que a receita na verdade fora passada para a Soninha pela Lucinha, outra cozinheira maravilhosa da família. Lucinha, uma Jovelina Pérola Negra, me chamava de "calabresa" porque achava que eu era a típica italianinha, ou algo assim. Sorria espremendo os olhos e era um sorriso que confortava a gente. Pensando bem ela é que era uma calabresa, começava as frases com a boca mas sempre as terminava com as mãos!
Ainda não sei direito de onde vem a raiz dessa alegria que eu sinto quando faço bolos, mas sei que como o trigo que hidratei essa semana, está germinando além do meu controle.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

moça ou senhora


Hoje na casa de câmbio A maior rede de casa de câmbio do país, "porque confiança é uma moeda que nunca desvaloriza no mercado", eu era a primeira da fila. O rapaz do outro lado do vidro me olhou e disse "espera aí que já vão te chamar". Quando a luz piscou com o número do caixa 4, me dirigi a ele, sentei e esperei meus R$ 190 concentrada no peculiar corte de cabelo do atendente, uma coisa assim Justin Bieber da Paraíba. Enquanto isso, o tempo todo uma senhora jovem usando um vestido indiano cor de vinho permanecia em pé e imóvel bem atrás de mim. Era incômodo. Eu ia perguntar "oi, o que você deseja?", mas achei que ela era apenas um ser muito apressado como qualquer paulista já foi um dia e deixei quieto. Até que depois de 20 minutos aguardando a troca de dinheiro o rapaz do caixa pediu "espera só mais um pouco que já tá sendo autorizado" e foi a deixa para ela grosseiramente se colocar na minha frente e dizer a ele, ignorando minha presença: "Moço, então, a senha que você chamou foi a minha, então você chama de novo por favor, porque essa mocinha passou na minha frente". Eu virei pra trás e disse sem me enervar ou gaguejar: "Oi. Minha senhora, eu não passei na frente de ninguém, eu fui a primeira a chegar. O rapaz indicou que me dirigisse ao caixa e eu apenas fui, não disse nada sobre a necessidade de pegar uma senha. E deixe de ser deselegante e vá esperar sua vez, por favor". O rapaz que havia me dado a instrução por coincidência apareceu no guichê bem na hora, falou "ela chegou primeiro" e foi embora, ignorando a confusão estabelecida. A senhora, meio sem graça, voltou à cadeira de espera e ficou mais uns 10 minutos reclamando "da mocinha que passou na minha frente" com sua amiga. Me deu vontade de levantar e repetir a história, mas a verdade é que eu me toquei: eu estava errada. Eu não peguei senha, eu fui na senha dela. Mas, ao mesmo tempo, eu estava certa: eu apenas segui a ordem do funcionário da casa de câmbio. O certo e o errado são dois remos da mesma canoa. Não tem observador que os enxergue em movimento igual. Depende da margem de onde se olha.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

conclusão


Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar 
novo rancho e comprar suas pobrezinhas. 

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula, 
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar 
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra

De Cora Coralina



ilustração: Suzana Gasparian

domingo, 25 de novembro de 2012

Oi, geleia


Geleia pra mim não tem nada a ver com prazeres de raiz, daqueles já costurados na gente. Nem com família, nem com café da manhã. Geleia pra mim é mais futuro que presente. Sabe aquela pessoa que você só conhece de passagem, mas sente que nalguma curva da vida vai ser sua amiga? Acho que é mais ou menos por aí, meu lance com a geleia.
Geleia me lembra minha cunhada Lucinha, embora ela com certeza não faça ideia disso. Quando eu me apaixonei pelo irmão dela, ela ainda morava na Sicília, em Palermo, onde aprendeu tudo sobre a magia da geleia com a dona da mais famosa fábrica da região. De volta ao Brasil, aproveitou a recém-conquistada expertise e abriu a empresa Sapori di Lu, com conservas tão maravilhosas que me fazem até hoje ligar a Lucinha às geleias. Por ora, ela abandonou a "alma conservadora" e é responsável pelo perfume que sai das panelas da Confraria do Café, o melhor restaurante de Cianorte.
Lucinha esteve em casa há algumas semanas e eu morri de vontade de pedir para que me ensinasse um pouco do tanto que sabe sobre cozinha. No entanto, como a estada foi breve, preferimos tomar cerveja no sofá e descobrir coincidências engraçadas como o fato de ambas se recusarem a investir dinheiro em uma boa garrafa térmica.
Mas sobre as geleias. Há tempos venho ensaiando esse encontro. Recentemente cheguei a improvisar uma de fisalis (o nome camapu é muito mais legal), mas fiz sem ver receita nenhuma intuitivamente com seis ou sete fisalis, e ficou mais pasta que geleia, porém boa.
Esses dias vi um vídeo da Tanea Romão com uma receita de geleia de morango e me animei. Fiz mais umas pesquisas e ontem finalmente joguei duas caixas de morango e um punhado de framboesa na panela com açúcar derretido. Não ia colocar limão porque achei que de acidez já bastava a dos morangos, infelizmente não muito doces. Tive de acrescentar o suco de um limão às pressas quando li ser ele, senhor pectina, o responsável pela consistência de geleia da geleia.
Uma hora depois, sem dramas nem sujeiras e com muita alegria verde, estava pronta a minha primeira geleia. Para uma brasileira acostumada desde criança a comer leite condensado de colher, faltou açúcar nela. Mas vou fingir que foi de propósito e que é minha porção francesa aflorando, como deve ser.



Nota: No momento em que a geleia era fotografada, ele avisa que os camarões ao molho de cenoura, receita nova, estão prontos, e sou cercada por duas gatas curiosas. 
A geleia veio em bom tempo pois virou presente de aniversário para o Juva, grande amigo. 
Esse post tem um pouco de Tata, pois afinal enquanto o escrevia li seu ensaio sobre Plitvička,  que tem cheiro de geleia silvestre.
Ah, nada contra você, azulinha, mas ainda vou ter uma colher barroca bem bonita...



Com atraso: o dia em que fui ao Quilombo dos Palmares

Eu via aquelas cabeças de barro nas pousadas chiques de S. Miguel dos Milagres, "é da Dona Irineia, a principal artesã de Alagoas", e como cheiro de bolo aquilo foi entrando em mim. Quando eu descobri que a d. Irineia morava no povoado do Muquém, a 9 km do Quilombo dos Palmares, foi como se alguém tivesse aberto o forno e colocado o bolo quente bem na minha frente. 
Lembro de ter pensado "estou a apenas 70 km do quilombo mais importante do Brasil, e não vou visitá-lo?". 
Como eu viajava a trabalho por um guia de viagens, não bastava a vontade sozinha, tinha que ser vontade precisada (afinal, não deu para conhecer a foz do rio São Francisco na Penedo tão bem-falada por ele; nem a Arapiraca das famosas sandálias de couro à moda cangaceira).
Mas acho que eu e Irineia tínhamos mesmo de nos conhecer porque o verbete do Parque Memorial Quilombo dos Palmares andava bem murchinho, e o chefe concordou que era interessante visitá-lo.

D. Irineia e o anjo cru

Parti de Maceió no Celta alugado rumo à Serra da Barriga. Em União dos Palmares, a cidade que sedia o quilombo, fiquei sabendo que para conhecê-lo teria de atravessar cerca de 10 km de uma estrada íngreme de terra e mal sinalizada. "O guia vai no carro com você". Fomos.
Era maio quase junho de 2010, início da temporada de chuvas nas Alagoas. Tinha muita, muita lama.
Chegando lá, que surpresa boa! Tão bonito e bem-cuidado o quilombo, apesar dos pouquíssimos visitantes naquele dia. Não é à toa, eu penso, que foi o maior e mais combativo quilombo do país: daqui de cima dá para ver perfeitamente qualquer figura que se locomove ao redor deste eixo. A sensação é a de que o quilombo está no único ponto alto de uma imensa planície.
Arrepiei ao me debruçar sobre aquela varanda junto com o guia negro debaixo de uma jaqueira, e sentir que nem tantos anos atrás assim poderia estar debaixo da mesma jaqueira Zumbi. Foi por causa dele que comecei a escrever este post, publicado com bastante atraso: o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra e feriado, homenageia o dia da morte do líder quilombola. 



 
A artesã, marido e neto

As cabeças de barro são a marca registrada de Irineia

Depois do quilombo, era a vez do Muquém. 
D. Irineia, assim como toda a população do Muquém, é descendente de Zumbi. 
Quando cheguei ao vilarejo ela não estava, tinha passado mal de tontura e sido levada ao pronto-socorro local. 
Esperei. O marido sorridente e os netos pintados de cimento e barro trabalhavam em alguma construção no terreno ao lado da casa. Hoje, vendo as fotos, acho que devia ser um poço. 
Irineia chegou, "não era nada", me abraçou, conversamos bem pouco. Mais me mostrou a família do que os artesanatos. Eu disse que era muito famosa no estado e que suas peças custavam quatro vezes mais fora dali. 
Me encantei por uma Nossa Senhora Negra com manto azul (hoje em Ibiúna) e um anjo de barro que não tinha sido queimado porém quis levá-lo de qualquer jeito. Irineia não mostrou resistência, "pode levar, tá cru mas não quebra". 
As duas asas chegaram quebradas em São Paulo. Mas eu estava sentindo aquela felicidade blindada contra qualquer desastre natural e artificial. Nem liguei. O Jota e o cunhado Jackson, por acaso lá em casa aqueles dias, deram um jeito nelas com Super Bonder, e quem vê o anjo na nossa estante nem repara que ele tem as asas remendadas. As melhores coisas da vida são remendadas.
Netas de Irineia
Essa foto morou na minha geladeira por muito tempo

No povoado do Muquém

Quilombo dos Palmares
Estátua em homenagem ao guerreiro Zumbi





sábado, 10 de novembro de 2012

Con confianza...


estão certas.

Foto da Teresa Andrés, do blog Da Horta, dica da Neide Rigo 

formigou



Íntegra da reportagem Caça às formigas, publicada no caderno Comida da Folha de S. Paulo, na quarta-feira, 7/nov/2012 

Aberta a temporada de formigas

O prefeito gosta de formigas fritas com bastante sal. O padre prefere-as na paçoca, socadas no pilão. A dona da sorveteria trapaceia um pouco e as mistura na com alho, calabresa e bacon. Mas o fato é que, tutelada pelo prefeito, abençoada pelo padre e modernizada pela sorveteira, todo mundo em Lagoinha come (ou caça) içá.

Lugarejo espremido entre dois polos culturais, Cunha e São Luiz do Paraitinga, Lagoinha, a 200 km de São Paulo, pode não ter um patrimônio como a Estrada Real e o Centro Histórico, a exemplo das vizinhas. Mas se garante no quesito bem imaterial.

Aqui, quando é temporada de içás, faz-se uma algazarra que ecoa por todo o Vale do Paraíba,  onde a içá tem presença marcante e não é tratada com cerimônia nem folclore. Para o caipira é iguaria, como qualquer outra. É o “caviar da gente taubateana”, como disse Monteiro Lobato, que aliás dizem que gostava tanto da formiga que pedia para enviarem de Taubaté à capital uma latinha de içá, periodicamente.

Bem, não é exatamente como qualquer outra porque sua temporada é tão curta que bate até a da jabuticaba, o que acaba gerando uma expectativa maior. E também porque, como durante muito tempo caipira virou sinônimo de jeca (e jeca sinônimo de tolice), o povo tinha vergonha de assumir que comia formiga, “coisa primitiva”.

“A içá é um costume dos índios que passou pelos caipiras por meio dos tropeiros. Mas todo o Brasil come içá, de ponta a ponta”, explica o culinarista caipira João Rural. A adoração é tanta que os valeparaibanos acordam com os patrões que, na época das içás, podem sair a qualquer momento do trabalho sem aviso prévio para caçá-las, e congelam as formigas para esticar sua validade e poder comê-las o ano todo.

Não só, içá também é fonte de renda. Em Lagoinha, estima-se que haja 50 catadores informais. O litro custa R$ 10 na temporada – a medida é em litros porque geralmente são vendidas em garrafas pet – e fora dela o valor aumenta consideravelmente.

Mas o formigueiro não está lá o ano todo, não é só cutucá-lo e pegar a formiga? Não, a içá, fêmea reprodutora das formigas do gênero Atta, só sai das profundezas do formigueiro em alguns dias entre meados de outubro e de novembro.

No dia 24 de outubro, João Rural recebeu o telefonema do futuro prefeito, Zé Galvão, dizendo que tinha dado uma chuva daquelas e era capaz que no dia seguinte as içás debandassem massivamente dos formigueiros pela primeira vez no ano. João passou adiante o comunicado, alertando que não era possível garantir que haveria de fato uma revoada. Correr o risco era loucura, não correr era loucura maior.


 À espera de um milagre

“Perderam a viagem, né? Esfriou...”. Assim Zé Galvão recebeu a reportagem do Comida, na porta de sua casa rosada, às 10h de quinta-feira, 25 de outubro. “Não vai ter formiga às 11h, mas ainda há chances de saírem as içás da tarde. Se o tempo continuar nublado assim, de jeito nenhum”, diz.

Quando era moleque, Zé Galvão se divertia catando içá como quase todo garoto caipira – atividade tão corriqueira que até Chico Bento, o personagem dos gibis de Mauricio de Souza, já foi visto ‘pescando’ içá, em uma tirinha. Em Lagoinha, quando dá de sair, elas invadem inclusive o Centro da cidade, para deleite dos meninos. Eles as caçam com tudo quanto é “arma”, incluindo as próprias camisetas.

Zé conhece tudo de içá, não à toa é apelidado de “o caçador de elite das içás”. As pessoas do Vale inteiro amam as festas que ele promove em seu rancho de pescaria, regadas a içá com mais sal que o normal, e cerveja. Ele explica que há diferentes “qualidades” da formiga, “tem a içá maior e marrom, tem a menor, com a bundinha mais preta”. Mas, vamos ao que interessa, e o sabor? O sabor é o mesmo.

O prefeito é precavido, congela muita içá, fora de temporada é um dos únicos da região que tem sempre uma boa reserva. Gosta de congelá-las porcionadas, em copos. Seria ele uma espécie de Zico Rosado, o coronel da novela Saramandaia, de Dias Gomes, que solta formigas pelo nariz?.

“Tem gente que gosta de comer içá e não de caçar, tem gente que gosta de caçar, mas não come”, esclarece Zé. Ele é da turma que come, a mulher caça. Sua empregada doméstica Elza Campos passa pela sala apressada igual nuvem de içá. “Não fiz nada ontem, me deu um desespero pra caçar. Fui até o formigueiro e nada”, conta ela, que também joga no time dos caçadores.

Ronda pelos formigueiros

A cidade inteira está à espera. Com Amarildo Pereira, violeiro afiado no violão e na prosa, fomos fazer uma ronda pelos formigueiros da cidade. Por via das dúvidas, são emprestadas do prefeito duas botas de borracha de cano alto. O “mapa dos formigueiros” incluía o do Arlindo, o do Pedro Gonzaga, o do Orlando e uns outros sem nome na beira da estrada. Em quase todos eles o acesso é fácil, as formigas gostam de campos abertos e arados.

Arlindo oferece um café, lamenta que não tenha mais criação de cordeiros, que vendeu depois de uma onça ter atacado seis deles, e pragueja contra as saúvas, “elas cortam pasto”. Visitamos os formigueiros e não há neles qualquer movimentação. Mas os “olheiros”, orifícios por onde as içás saem, estão “limpos”, sem folhas, o que é um bom sinal.

No quarto formigueiro, no Morro do Aracaçu, Amarildo quase desmaia de felicidade. “Gente do céu, olha só essa ferveção, vai sair içá desse formigueiro hoje!”. Um formigueiro lotado de pequenas saúvas. Ele checa as horas no celular. “Meio-dia, essa içá é a da tarde”. Para garantir, chama o primo Zé Maria dos Santos, o maior farejador de içás de Lagoinha, que mora ali perto. Zé Maria entra no formigueiro, fica 10 minutos observando o movimento e decreta: “Vai dar içá às 15h30”. 



Às 15h30, Zé Maria estaciona a bicicleta numa árvore próxima ao formigueiro e entra em um modo de concentração absoluta. Identifica com a rapidez de uma piscada de olhos quais, entre aquela formigaiada toda – saúva, sabitus e içás – são as içás. Segurando em suas asinhas, vai botando uma a uma dentro de um saco plástico que segura em uma das mãos. Não pode parar para pensar, senão leva uma mordida. Içá não tem ferrão, mas sua mordida é forte a ponto de deixar as mãos sangrando.

Enquanto Zé Maria cata, Amarildo canta. “Içá tem a sua época, não cai todo dia/ Gostoso é ver catar içá o meu primo Zé Maria”. Os versos rimados contêm içá, botina, botas do prefeito, jornal, chuva. “Pra chegar ao formigueiro, deixei de lado a estrada/o gostoso do içá é a sua zoada”. Eles chamam zoada o barulho de chuva que as içás fazem quando estão todas juntas. O som lembra o tacapu, o pau de chuva dos índios.

Quase três horas se passam, o sol continua inclemente e o Zé Maria ainda está lá catando. Subitamente, todo mundo sente muita sede. É a deixa para encerrar o expediente. O espetáculo é tão raro que saímos todos meio a contragosto.



No carro, a caminho do Centro, Amarildo recebe um telefonema. “Tá dando içá no Tijuco Preto e as meninas estão indo pra lá?”. A caminho do Tijuco... não é a Elza, a empregada do Zé Galvão, naquele canto da estrada? Havia um outro formigueiro, bem miúdo, jorrando litros de içá à beira do asfalto. Elza acena, suada e anestesiada. “A gente não veio preparado, não sabia que ia sair tanto, mas improvisamos uma trouxa com uma capa de chuva”, comemora, a trouxa pesada como se tivesse chumbo dentro e não formiga. Ela e um rapaz juntaram seis litros.




Cozinha

A festa vai ser na casa do Zé Maria. Já tem lenha no fogão e sua mulher, doce Rosilda, botou as içás numa tigela com água e começou a limpeza. As comadres chegam para ajudar, nós ajudamos. Com elas ainda vivas, tira-se com as mãos suas mandíbulas (com cuidado, para não ser mordido), asas e patas. Sobra só a cabeça e o abdômen.

Amarildo bate umas fotos e toca viola, Zé Maria cozinha e bebe uma cervejinha e sua filha Zazá, orgulho dos pais, vice-campeã do torneio Tabuada Vanguarda, acalma a pequena Nara, que grita “içá, que medo!”.


À mesa, as içás são apreciadas sempre com farinha de mandioca crua, mas como aperitivo, nunca como acompanhamento de coisa nenhuma. Nem um feijão com arroz? Nada, não se come içá durante a refeição, içá é uma estrela solitária. Ou faz par com cafezinho, no lanche da tarde; ou embala a cerveja e a cachaça do começo da noite. Em tempo: içá é comida caseira, não chegue em Lagoinha procurando por um restaurante que sirva a formiga, que não vai encontrar.

O jeito tradicional de prepará-las é fritando-as na banha de porco ou no óleo, em fogo médio, por cerca de 15 minutos. Mas há quem as prefira mais tostadas que fritas, como Zé Maria – para obter tal resultado, ele usa pouco óleo e não abre mão do fogão a lenha. A panela é retirada do fogo e só então é acrescentada a farinha de mandioca crua.

Come-se de colherada ou com as mãos mesmo, feito um amendoim. Tem gente que diz que o gosto lembra menta; tem gente que diz que está mais para castanha. "Tem gosto de içá", a maioria diz, negando-se a teorizar sobre seu sabor. O certo é que é crocante e estalada e deixa na boca um desejo de mais.

Agora, há outras maneiras de degustar a iguaria. O violeiro Amarildo e o padre Leo, por exemplo, gostam da içá na paçoca, mais suave. “A paçoca, bem-temperada, com cebolinha, não tem quem não coma”, jura Amarildo. Inspirada na parentada de “Guará”, a dona da sorveteria Moura, Ana Maria Moura, inventou uma receita com alho, calabresa e bacon que a neta de 4 anos adora.

A sua receita favorita você só vai saber provando a rainha das saúvas, que felizmente não acabaram com o Brasil, nem no Brasil. E, só por hoje, estão frescas.






O farejador de içás de Lagoinha


“Pode cantar música de Nossa Senhora catando formiga?”, pergunta Zé Maria, o maior farejador de içás em Lagoinha. Com a medalhinha da santa no pescoço, ele mete a mão no formigueiro e, à medida que avança na música “Nossa Senhora, pra chegar a essa terra, cruzou vales e campinas, mares, montanhas e serras (...)”, vai crescendo a colônia de içás dentro de seu saco plástico.

Para se chegar às içás não é preciso cruzar vales, campinas, mares e serras, mas é necessário atravessar 365 dias e contar com a “bênção” de estar no formigueiro certo, na hora certa, no dia certo. Dizem, na cidade, que o pedreiro José Maria dos Santos fareja como ninguém os formigueiros que vão “ferver”. Ele não desmente a fama, mas tampouco embarca dela. “Eu só fico esperto quando chove, e ando muito”.

Uma coisa é certa: quando o homem entrou no formigueiro do Morro do Aracaçu na quinta-feira, dia 25 de outubro, dia oficial da quebra do jejum de um ano das içás em Lagoinha, o tráfego de formigas se intensificou. O primo violeiro Amarildo Pereira, junto na expedição, se gabou: “Eu não disse pra vocês?!”.

Nesta época do ano, Zé Maria chega a andar mais de cinco quilômetros só para dar uma checada em um formigueiro. Naquele dia mesmo tinha caminhado esse tanto atrás de um “formigueiro que é certo”. Não podia acreditar que logo o mais trivial, no Morro do Aracaçu, a 500 metros de sua casa, seria a bola da vez.

Zé Maria conversa com as içás enquanto as pinça, uma a uma, com as próprias mãos. “Não morde, formiga”, repreende-as, mas é daqueles caipiras que não desmancham o sorriso nem mesmo na hora da bronca. Diz que não se importa com as eventuais mordidas, “faz bem pra saúde”, e gosta de catar içá porque descansa a cabeça, “não lembro de nada”.

E também, é claro, incrementa a renda familiar. Antes mesmo da saída das içás, já tinha uma listinha com pré-encomendas. Costuma ficar com poucos litros do que cata para si, que mal chega a congelar – prepara um dia para toda a família e fica satisfeito pelo resto do ano. A maioria das içás capturada é vendida. Em 2011, ano em que a safra foi fraca, juntou 15 litros. Seu recorde em um só formigueiro foram nove litros.

Amarildo tira sarro do primo, que é pedreiro na prefeitura de Lagoinha e cabulou o trabalho  naquela tarde. Zé Maria confirma a história, explicando que em outubro e novembro o chefe está ciente de que ele pode abandonar o serviço para se dedicar à tarefa kafkiana de capturar formigas. Se o prefeito pode, todo mundo pode.


Raio X
Nome científico: fêmeas reprodutoras de diversas espécies de formigas que pertencem ao gênero Atta, também conhecidas como saúvas.
Nome popular: içá ou tanajura
Tamanho: até 3,5 cm de comprimento
Peso: entre 300 mg e 1g
Tempo de vida: até 20 anos, em condições artificiais
Onde tem: em todo o território brasileiro

A revoada



Tudo acontece depois da segunda chuva de primavera, que geralmente cai em meados de outubro. É ela que determina: está aberta, no Vale do Paraíba, a temporada da rainha das saúvas. Ligeira, vai apenas de 15 de outubro a 15 de novembro. Então você ainda tem uma semana para programar uma visita a Lagoinha. Mas, atenção, isso não quer dizer que todo dia vai sair içá.

Caprichosa como toda soberana, a içá só sai do formigueiro sob algumas condições. Primeiro, há de ter chovido uma chuva pesada, com rebentos e trovões, um dia antes. Quando a chuva acabar tem de haver mormaço, ficar abafado, não pode refrescar. Mas, ainda assim, mesmo se as condições forem ideais, pode ser que as formigas simplesmente... não saiam. “Só a natureza é que sabe contar”, pregam os antigos.  

As formigas costumam sair pontualmente em dois horários: às 11 horas (a “içá da manhã”) e às 15h (a “içá da tarde”). “Mas nessa época elas podem se adiantar um pouco porque não conhecem horário de verão”, lembra o prefeito recém-eleito Zé Galvão.

Primeiro, o formigueiro fica recheado de operárias, as velhas conhecidas saúvas; depois os sabitus, que são os machos das içás; e por fim as rainhas. Elas têm asas e saem voando bem alto, é o chamado “voo nupcial”. Fazem isso para procurar machos de outras colônias e se acasalar. Depois voltam para o solo, perdem as asas e começam a escavar sua própria colônia.

Todo esse processo – da saída das operárias à revoada das içás – dura cerca de três horas. Não há explicação científica, mas sempre que cai içá, cai chuva em seguida.

Com a palavra, o mirmecólogo. Ou especialista em formigas

Rodrigo Feitosa, pesquisador doutor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), é um mirmecólogo. Traduzindo, ele é um especialista em formigas. Aqui, esclarece dúvidas a respeito da içá (que ele já caçou muito quando era garoto e vivia em Guarulhos, aos pé da Serra da Cantareira).


As içás saem somente nesta época do ano. Por quê?

O período coincide com o início das primeiras chuvas de verão e elas funcionam como uma espécie de gatilho que indica para as formigas que é hora de voar para se reproduzir. A chuva também amolece o solo, o que facilita a saída das içás e dos machos (os sabitus) das colônias e também deixa a terra mais fofa para quando as içás estiverem fecundadas e forem escavar suas próprias colônias.

O que as içás têm que as torna saborosas, diferentemente das operárias e dos sabitus?

Sua morfologia é completamente diferente das outras. Enquanto as operárias são pequenas, não possuem asas, são estéreis e vivem da tarefa de cortar folhas e garantir a manutenção e defesa da colônia, as rainhas são bem maiores, por causa da musculatura ligada ao voo. E, depois do voo nupcial, sua única função na colônia é botar ovos, milhares por dia. Por ter esta função, a parte posterior do abdômen das içás é muito dilatada, pois comporta ovários muito desenvolvidos (que é a parte preferida dos apreciadores). 

Do que elas se alimentam?

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, as formigas saúvas não se alimentam das folhas que elas cortam. Elas usam as folhas como uma espécie de adubo sobre o qual elas cultivam um fungo esbranquiçado em forma de algodão. Este fungo, sim, é o alimento das saúvas. As colônias destas formigas podem ser muito grandes, podem ter centenas de metros quadrados de perímetro e alguns metros de profundidade. O ninho se constitui de várias câmaras onde são criados os fungos e tem um sistema especial de ventilação. O ar "viciado" é expelido por chaminés e o ar fresco entra pelas aberturas no solo.

Receita clássica - içá frita 



Porção: 10 pessoas
Preparo: 15 minutos

Ingredientes: 400g de içá; 1 e 1/2 colher (sopa) de sal; 1 xícara mal cheia de óleo; 1 xícara de farinha de mandioca crua.

Preparo: Em fogo médio, esquente o óleo e a fritar as içás. Mexa sem parar. Depois de 15 minutos, ou quando as cabeças começarem a se soltar do abdômen (a popular bundinha), e também quando ficarem mais aparentes as listras da bundinha (ela vai ficar parecendo uma abelha), salgue e tire a panela do fogo. Na dúvida, experimente. Tem de estar ultracrocante, por dentro e por fora. Se tostar de menos, a “casca” vai estar áspera; de mais, amarga. Acrescente a farinha de mandioca crua, misture bem e sirva.  Opcional: acrescentar quatro dentes de alho bem macerados quando as içás estiverem quase no ponto, junto com o sal.

***Nota: até a publicação deste post, as içás não voltaram a sair dos formigueiros em Lagoinha


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

eu não vou comprar um novo


Hoje em dia é assim: uma coisa quebra, te recomendam comprar outra. Recentemente houve uma rebelião de eletrônicos em casa. Primeiro foi a batedeira; depois o computador, a revolta mais agressiva; aí o iPhone apagou; e por fim na terça-feira passada o fogão entrou em curto circuito. Se algum desses problemas me chateou? Nem um pouco. Mas achei engraçada a reação das pessoas. Todas, com exceção apenas da minha mãe, argumentaram que eu tinha que comprar outro computador, outro fogão, que não compensava arrumar. Financeiramente, talvez não. Mas, misericórdia, são equipamentos que nem bem completaram dois anos, e já vão pro lixo? Sei lá, acho que é da vida se conformar que você às vezes vai se prejudicar um pouco para evitar desastres maiores. Tipo pilhas de lixo com fogões, celulares e computadores cuja vida foi prematuramente interrompida por...caprichos estrambóticos modernos. Eu chamo assim. E eu nem reciclo o lixo na minha casa, não sou exemplo de cidadã, não sou engajada em causa nenhuma. Mas gosto que o meu computador seja o mesmo que viajou comigo pro Ceará, e gosto de olhar o fogão e lembrar o dia em que faltei no trabalho e fiquei esperando ansiosamente o caminhão das Casas Bahia estacionar na porta de casa. É preciso ter paciência para ouvir (e contar) uma boa história. E não é coincidência que muitas de nossas melhores tenham sido recolhidas numa caçamba de lixo.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Flor dos mortos


Uma flor de Día de Muertos em homenagem a todos os queridos que já se foram.

Foto: Paula Desgualdo, Especial para o Calunga Cor de Rosa, de Toluca de Lerdo, México

sábado, 27 de outubro de 2012

habitual


É engraçado, o hábito. Trouxe um café do aeroporto de Bogotá, café Rausch, mezcla de notas cítricas con leve gusto de mandarina. Excelso Supremo Especial, produto com a assinatura dos chefs Jorge y Mark Rausch. Uma beleza, o café. Cheiro, maravilhoso; na boca, maciozinho, redondinho, suavemente cítrico e... desagradável. Veja, o café era ótimo, mas não era o nosso café de todo dia, o café forte, rústico, amargo e até meio sujo que nos recepciona toda manhã, garantindo faça chuva ou faça sol, haja correria ou haja contemplação, que vai dar tudo certo e amanhã estarei esperando vocês de novo. Quente e igual. O legal é que hábito a gente pode mudar, tudo é uma questão de costume, desde cedo a gente aprende. Parecia impossível se acostumar com a nova classe, parecia impossível se acostumar com a separação dos pais, o fim do namoro, o novo idioma. Mas a gente escolhe e, se não tem escolha, se adapta. Só que no caso do café não houve trégua, não. "Estranho", disse ele; "Estranho", disse a mãe. Esse café sai, decretei. Botei de volta no pote o nosso café bandidão. Do colombiano restou a caixa, não tive coragem de jogar fora, pois é chiquérrima, e coleciono coisas como caixas de cafés exóticos e lâmpadas mágicas do Oriente Médio. A gente só coleciona o que não é natural nosso, que linda a embalagem desse leite americano, que lindo esse pote de biscoito suíço! Já viu alguém guardar caixa de sabonete Dove, palha de milho de pamonha? O que é diferente a gente quer guardar, o que é nosso não precisa, semana que vem tem de novo. Só o hábito liberta.

foto: café expresso que eu tomei quase até o fim (o que não é nada habitual). No restaurante Fabbrica, mesmo metido uma boa surpresa em Williamsburg, no Brooklyn, Nova York.