segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Demorão ou jájão


Hoje despertei às 6h30 e depois de muito tempo sem fazer isso tive vontade de caminhar até a padaria
Já não ligo muito para a roupa que estou vestindo, ou como está o meu cabelo, ou se sujei a blusa de pera 
Caminhar é engraçado, as pernas gorduchas desconjuntadas, as dorzinhas que vêm daqui e dali e não se sabe de onde, e aquela vontade doida de arquear os pés, mas elas têm uma firmeza e uma certeza que é só delas, as grávidas e as bailarinas. 
Enquanto o mundo espera a notícia grande, você se concentra nas pequenas, no trivial, lavar a louça, passar o café. Tinha um professor que dizia que só a leitura salva mas eu acho que são as coisas ordinárias.
"Ser forte é parar quieto; permanecer", fui atrás do Rosa hoje.
"Demorão ou jájão", você vem
Você está vindo, a cada esquina você vem um pouquinho mais, a cada contração, a cada coliquinha, a cada puxada de perna, a cada noite mais ou menos dormida
*
O fim, pra mim, tem sido mais tragicômico que enfadonho. Derrubo tudo no chão, absolutamente tudo, do sabonete à tampinha da água, papel higiênico fora do lixo, e pra levantar e pegar é aquela coisa bonita, abrir as pernas pra barriga se encaixar no meio. 
Abaixar pra colocar comida para as gatas dá contração, ataque de riso dá uma espécie de contração. Sentar no sofá não é mais uma tarefa simples, requer aquecimento prévio: pelo menos cinco almofadas nas costas e um impulso na hora de levantar, por favor!
Ora me sinto uma velhinha, ora me sinto uma baleia encalhada 
hahahahaha pode rir, você
E às vezes também dá vontade de chorar, sem muito motivo, como eu fiz ontem no banho. É que é tão bonita essa travessia, mesmo com suas feiuras e incomodezas, e nós chegamos até aqui, meu grande garoto! 
até onde chegaremos mais?
*
Os irmãos já dizem oi e se despedem, "oi, Bento, tchau, bebê". A menina morena que adora verão sonhou que você era o "grude" dela e tinha olhos azuis. O garoto comprido que está pesquisando a Antiga Pérsia sonhou que você tinha olhos verdes. Como eu, quando eles sonham com você, você tem olhos claros, o que não deixa de ser curioso.  
Seu pai está leve como um passarinho, canta e dança pela casa à tua espera. Semana passada comprou champanhe no nosso dia mais duro - vai que ele vem hoje!, e dias depois foi a minha vez de providenciar dez taças descartáveis. 
A avó materna, já incansável no papel de avó que cuida e provê, se diz "pronta para ser avó, e calma". Ela está também eufórica de felicidade. Bento, se prepara!
A bisa Teresinha comentou com a tia Célia, que na última quinta-feira encheu os olhos de lágrimas fazendo carinho na minha barriga, que a neta está na fase do armário, "quando você entra no armário e quer ficar quietinha".
É que quanto mais me concentro, mais eu te sinto.
*
Me diziam que os últimos meses de gravidez eram iguais aos primeiros, mas definitivamente a gravidez é sem regras, pra mim eles foram desenhados de forma bem diferente.
No entanto se há um afluente entre esses dois rios, o do começo e o do fim deste país que é a gravidez, é a necessidade de aquietar e permanecer. 
*
Dentro de mim, você é ora peixe ora passarinho, sinto suas barbatanas se agitando e suas asas batendo, sinto sua vontade de vir, e de ficar mais um instante.
Tem coisa divina nesse exercício de esperar, será hoje, será amanhã, será só daqui a três semanas, pois possível é. Se não tem história igual, como será a nossa, o que vai acontecer primeiro o bolo vai cheirar ou o garfo sair limpo?
Anteontem eu consegui fazer pela primeira vez um clássico bolo de cenoura, sabor familiar, igual a ele já se fizeram milhões, e foi uma alegria maior do que ter inventado uma receita inédita que ninguém nunca sonhou em fazer. 
Eis o que quero, quero sumir na multidão, quero o clássico e o igual, quero simplesmente fazer o que fazem as mulheres há milhares de anos: parir.

foto: para honrar o fim, o começo. créditos: jb/agência passarinho







quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

rituais, renascimentos e nascimento


Vim de uma família muito ligada a rituais e, como é comum acontecer e em certa medida saudável, quando eu cresci eu os neguei. 
Nos últimos anos, fui me desapegando de todos eles, um a um. Ritual do aniversário, do casamento, do Ano Novo. 
Foi libertador descobrir que nada precisa, pular onda não precisa, papel passado não precisa. Foi especialmente curativo pra mim, que cresci com um glossário mental de duras condições e proibições a mim mesma criado por ninguém menos que moi-même. 
Aí este ano e disso me dou conta só agora, me reencontrei com os rituais a partir de um outro lugar.
Aconteceu em abril. Eu e ele resolvemos registrar nossa união de três anos em cartório por uma mera questão burocrática, o seguro saúde. 
Fomos ao cartório desencanados, tomamos um café ruim na recepção e lembro de estar sendo divertido. Na hora de declarar desde quando vivíamos debaixo do mesmo teto, nenhum dos dois sabia precisar, então inventamos uma data, 20 de maio de 2010, e assim consta no documento. A mulher que nos atendeu tinha a foto de um bebê bochechudo e rosado no fundo de tela.
Tudo declarado e assinado, saímos daquele cartório na rua dos Pinheiros com uma sensação diferente que, pra mim, teve a ver com preenchimento. O fato é que fomos os dois tomados por uma súbita felicidade, simples assim, então a gente se olhou e disse: "Vamos sair pra jantar hoje?". 
À noite, subimos a Fradique a pé de mãos dadas e comemos e tomamos uma taça de vinho no AK. Sem saber de nada, eu já estava grávida. 
Nós casamos e engravidamos na mesma semana, e foi tudo tão livre, gostoso e curtido que se depois desses episódios eu não fizesse as pazes com os rituais aí é que seria estranho. 
Aprendi com isso que rituais são ótimos quando escolhemos fazê-los do nosso jeito e no nosso tempo.
Também me considero uma pessoa de sorte porque estou cercada de uma família que, apesar de me achar um tanto quanto excêntrica, me respeita e até me ajuda a lembrar quem eu sou. 
Quando resolvi fazer o chá de fraldas do Bento, por exemplo, a tia Carlota encheu a casa de manjericão, salsinha, alecrim e flores do campo em vez de majestosas orquídeas, sem que eu expressasse nada. Acho que nem eu mesma sabia que essas eram as flores perfeitas pra gente naquele dia.
Nesta segunda-feira minha mãe estava às 10 da noite no Extra atrás do "caldeirão do Bento" e ontem de manhã meu irmão me mandou uma foto via whatsapp, de uma Americanas, "é essa a piscina?". 
Meses antes de nascer, nosso menino já tinha padrinho e madrinha escolhidos. Eu me lembro de, uns dois anos atrás, nem cogitar batizar um filho. Mas hoje me pareceu natural e bonito fazê-lo.
Eu só me pergunto: se eu não tivesse conhecido o gosto dos rituais, se eu não tivesse sido levada a batizados, casamentos formais, missas, se não fossem as intermináveis Ave-marias da meia-noite do dia 24 de dezembro na casa da vovó, as sete-ondinhas puladas à meia-noite todos juntos no sal e no escuro, mais de uma década de domingos comendo as mesmas polpetas e balas de leite maravilhosas, será que eu seria capaz de recriar rituais? 
E não são paradoxalmente esses mesmos rituais os responsáveis por algumas das melhores lembranças da minha infância?
O legal é pegar as receitas dos rituais que te interessam e personalizá-las, acrescentando a elas pitadas daquilo que faz o prato encher de sabor pra você. Se achar alguém que tenha o mesmo paladar, melhor ainda. Não importa que seja incomum, estranho ou até trivial. Ontem mesmo ele disse "não tenha medo da margarinização dos sentimentos, às vezes eles são assim mesmo".
Taí uma coisa que eu não tenho, nunca tive, gosto do que é piegas, gosto das flores no cabelo da Tetê-Para-Choque-Para-Lamas, sou ranchera e ainda vou conhecer o México, como leite condensado até hoje de colher apesar de genuinamente amar jiló, o que considero meu mais alto pico na escalada da sofisticação das papilas gustativas.
O Natal. Eu adoro o Natal, sou minha mãe escrita nesse quesito, nunca deixei de adorar e vou adorar sempre. Jingle Bells, filme de Natal, cheiro de pinheiro, 25 de março cheia, trânsito, decorações cafonas, peru, Papai Noel, as castanhas portuguesas assadas da Neri que não existem mais.
Mas o que eu queria mesmo dizer é, é Natal e estamos na iminência de ganhar o melhor presente de todos os tempos: vamos receber nosso filho. Não posso imaginar reconciliação mais bonita e definitiva com os rituais.
*
Gracias a la vida, que me ha dado tanto!
*
Feliz Natal, meus queridos!

Trilha sonora do post: Take me as I am, do Au Revoir Simone: http://www.youtube.com/watch?v=Lu5LxBPbqSc







sexta-feira, 29 de novembro de 2013

e lá vão oito


Se você vai gostar de jabuticaba como eu, ou melancia como ele
Se você vai gostar de jaca, como eu e tão poucas pessoas que eu conheço. Uma vez comprei umas amarelinhas na feira que escorregavam na boca e estavam tão doces, filho. "A melhor que tem é a amarela, acabou de ser apanhada, é difícil achar", disse o feirante. E era verdade!
A verdade é que você vai ter suas frutas preferidas, um gosto pessoal e intransferível para tudo e ele vai ser naturalmente diferente do nosso.
Às vezes eu imagino a cor dos seus olhos e do seu cabelo, seu jeito de olhar, o ritmo do seu sono, a sua personalidade. Claro que tenho sensações e palpites, muito metida como toda mãe acho que de você já sei muita coisa. 
Mas a verdade é que penso nessas coisas bem menos do que achei que fosse pensar. No fundo do meu coração elas não têm a menor importância. Só têm importância eu te sentir bem, te sentir mexendo, te sentir conectado.
Eu só te amo. Amo ter você morando na minha barriga, amo sentir você se mexendo, amo as contrações, amo a falta de ar. Porque são conquistas nossas. Porque um dia você foi só uma ideia, noutro você virou semente de gergelim e agora você é um bebê pequenininho. Daqui a pouco você vai ser bebê prontão, um dia vai ser menino, menino grande, rapazinho, homem e esse é o ciclo certeiro da vida. 
Anteontem eu entrevistei um cara que disse coisas tão legais sobre a vida. "Não tenho a intenção de que esse negócio dure pra sempre". "Você acelera uma árvore? Por que acelerar uma empresa?". "A vida é cíclica". 
É como a gravidez. A gravidez é cíclica, a gravidez é outro tempo, um tempo sem espaço para a aceleração e com muito espaço para o relaxamento. Um tempo rico em significado, e eu espero levar tudo isso junto comigo quando você fizer check out.
É muito doido e lindo como o nosso corpo vai se adaptando às transformações. E como a energia vai mudando, mês a mês, semana a semana. 
Mas espera, nada dói, nada incomoda, tudo cor de rosa? Claro que tem incômodo, tem chatice, tem irritação, tem briga, tem falta de sintonia, tem aflição. Mas acho que se você aceita a natureza das coisas, sem querer acelerar ou desacelerar nada, tudo fica mais fácil. 
*
Cinco meses depois de aterrissar em Moema e desviar para a Augusta, quero flanar. Gastar o tempo regando as flores na varanda, apreciando o novo grafite da fachada, fazendo bolo para os queridos, observando as gatas beberem água, revelando fotos, quero saber o que ele está sentindo, quero namorar.
*
Semana que vem vai fazer 36 semanas que estamos juntos nessa empreitada, oito meses completos. E quando ela chegar ao fim, significa que o sinal está verde pra você chegar quando bem entender. Isso me dá muita emoção e gratidão. É como pensar no seu parto. Eu penso e me emociono, choro. Choro onde for, no trabalho, no ônibus, na rua.
Agora quero fazer só o que faz sentido fazer agora: esperar você. As pessoas dizem que o último mês dura uma eternidade, que é melhor a gente não ficar muito à toa porque senão o tempo não passa e a ansiedade vai à mil. 
Mas eu não ligo, eu não vejo a hora de ficar à toa só esperando você, e suspeito que, mesmo sem meta e horário pra cumprir, serão os dias mais atarefados dos últimos tempos.


foto: Flor da Madrinha/Paula Desgualdo


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

felicidade


Eu me sinto tão feliz
Eu não sei desenhar essa felicidade, mas um dia me veio a imagem de uma bola que vai crescendo e se expandindo dentro de mim, o que não deixa de ser literal.
Me sinto um pouco o Cat Stevens quando parou a música e confessou que não lembrava de sua própria canção, pedindo ajuda ao teleprompter. "A opinião dos outros já não é o que importa mais e sim sua própria satisfação pessoal", como escreveu o Jota.
Não sinto nada diante de um sério problema corriqueiro, não me tiram mais do trilho. Amo todos os domingos, até os muito quentes, e todas as manhãs de segunda-feira. Amo a tosse seca insuportável que me acompanhou por 15 dias. Amo os quartos de bebês mais bobos. Amo até minha forma mais feia, minha explosão mais sem sentido. Amo tudo indiscriminadamente. Paz e amor, 70's total, chá de cogumelo, também magia e meditação, Legião Urbana, amo tudo, aceito tudo. 
Você está aqui, você está dançando dentro de mim. Se eu toco a barriga você chuta bem naquele pedacinho que eu estou tocando, e por essa generosidade sempre lhe serei grata. 
Bebê generoso, agitado, mas não agitadiço, bebê que não mexe depois de um chocolate, mas mexe muito com rabada. Me faz comer pimenta, sonhar com um escondidinho de linguiça e trocar sorvete de chocolate por limão. Bebê que dançou o tempo todo no show do Cat Stevens.
A gente vai fantasiando. A gente vai sentindo. 
Nessa semana nasceram muitos bebês. Nasceu o menino da Jana, chegou o tempo dele, finalmente, depois de a mãe ter insistido algumas vezes "vem, nenem, vem". Chegou a princesa cabeluda da Lelê. Imagine só que há duas semanas encontrei a Lelê na porta da Galeria Ouro Fino, com aquela barriga pontudona que agora é Luisa. É emoção demais.
Às vezes sinto que você já está aqui fora. Hoje no almoço com seus avós no Paulistano você entendia tudo. Principalmente de manhã, na hora de acordar, sinto a sua presença deste lado aqui muito forte. Ontem à noite, subindo as escadas para ver o móbile no quarto, senti cheiro de nenê!
"Take it slowly", canta o Cat. Há 15 dias fiquei sabendo que alguma coisa já começou. E venho conversando com você, com carinho, te pedindo pra esperar um pouquinho. Não que precise pois eu acho que quem mais entende tudo de ritmo e timing neste trio é você.
Quanto mais se aproxima a sua chegada, mais feliz eu me sinto e esse é um sentimento involuntário e blindado, sem cor nem som, que tem raízes mas voa.
Eu não sei de nada, filho, só sinto e fantasio, mas quando chegar a hora de você dizer "I know I have to go away", é nesse lugar que eu quero estar.


foto, produção e engenharia da foto: dad

trilha sonora do post: "Father and Son", de Cat Stevens



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

anotações e céu na parede


No sábado em que batizamos nossa casa nova com os salve-salve dos amigos, as meninas do Paulo chegaram bem perto da minha barriga e com a maior naturalidade do mundo bateram um papo com você, te chamando de "Bichano".
Eu ri muito e desde então te chamo de Bichano às vezes. 
*
Dia desses tava almoçando com a Marly quando a Fernanda, do coworking Pto de Contato, passou pela nossa mesa e disse "Oi, meninas. Oi, Bento". Que delícia! Passei o dia lembrando disso e sorrindo. Foi como se você já estivesse ali, sentado com a gente.
*
Você reconhece o barulho do liquidificador. Toda vez que eu vou bater um bolo ou um suco e ligo o liquidificador, você começa a chutar. Eu dou risada e falo "rapidinho, Bento, só mais um pouquinho", e protejo a barriga com uma das mãos.
*
No sábado, durante uma gravação de vídeo em Santa Gertrudes, no interior de São Paulo, entrevistei uma garotinha que coleciona livros. Ela foi logo me mostrando qual era o mais precioso de sua coleção, o primeiro, segundo a mãe o livro que fez com que a filha acreditasse que já era capaz de ler. O nome: Bento, A abelhinha
Na despedida, a família toda no portão, a mãe gritou: "Avisa quando o Bento chegar!".
O livro, fotografei todas as suas três páginas, e sua avó quer procurá-lo em sebos.
*
Quase todos os dias, na Galeria Ouro Fino, a doce faxineira que eu gostaria que tivesse apelido pois o nome diferente não registro, pergunta de você. "E o Bento?", "Oito horas e ainda aqui? Hãn", "Cuidado com esse menino, não corre!". Agora, na cozinha, ela perguntou: "E o Bento, mexendo muito?". Muito, o tempo todo, é um bailarino, cada dia uma nova coreografia!
*
Cada dia que passa aumenta minha vontade de te apertar, te segurar no colo, te alimentar, te conhecer. Mas sem pressa, sem ansiedade. Aquela sensação gostosa de a festa tá chegando, mas ainda demora, dá tempo de sobra pra gente se preparar pra ela, achar o vestido e decorar o salão, e se pudesse escolher a data ela seria exatamente no dia que é, nem antes nem depois.

foto: o céu azul granulado cor de lagoa mágica que aguarda Bento

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

primos e raízes




Hoje a Luiza, que está naquela fase do "não" e sempre foge aos meus abraços, espontaneamente me cutucou e disse: 
"Eu acho que o seu bebê vai adorar você"
Me agachei e fiquei lá acompanhando a refeição dos três, na minimesa na casa da bisa Teresinha. Julia lambuzada de macarrão com molho branco, uma legítima integrante da minha família. 
Daí o João Pedro me ofereceu sua última coxinha.
Luiza e João Pedro, querendo me matar de amor?
Entendi que não era comigo, não, Bento, era com você que eles estavam falando, era pra você aquele carinho todo. 
Crianças têm uma sensibilidade diferente da gente comum em relação a uma mulher grávida. 
Elas podem estar cansadas, sonadas, irritadas, mas basta você aparecer e falar que tem um bebê aqui na minha barriga que elas ficam calminhas e te olham como que hipnotizadas.   
Eles são seus primos, filho. As roupinhas que você vai usar, os sapatos, as naninhas, a cadeirinha, o colchão, tudo um dia foi usado por essas brilhantes pessoinhas.
Você já nasce com coisas significadas que serão ressignificadas por você. Você vai inventar uma nova história para elas. 
Será que o Antonio abriu seu primeiro sorriso usando aquele macacão branco? Que o João tomou seu primeiro banho de mar com aquela sunguinha? Que a Joana deu seu primeiro passo no dia em que calçava aquela sandália?
Sétimo, você é o sétimo bisneto da incrível vovó Teresinha e o quadragésimo neto de João Francisco de Medeiros, o lendário Paraíba de Cianorte. 
Como qualquer ser e como nenhum outro ser, você nasce com duas raízes, trançadas num lar só. 
Eu acho que o meu papel, como escreveu com perfeição uma amiga essa semana para sua mãe, é te dar amor bastante para que seu pequeno coração possa passear seguro por este mundo afora e, a partir de suas raízes, plantar suas próprias flores.

foto: Jotabê Medeiros/O Pai

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

a gravidez


Ontem ele me perguntou como é. Como é ter um bebê na barriga. A sensação. É como o quê, como você descreveria?
Largadona na poltrona, eu sorri e disse o que a gente não costuma dizer nunca, mas suspeito que comece a dizer cada vez mais, sem vergonha:
“Eu...eu não sei. Vou pensar e te digo depois, tá?”, me esquivei.
Aí lendo um post da Potencial Gestante agora vejo a frase “por mais que tente escrever, a sensação parece inexplicável”.
Às vezes enquanto desço a Augusta lembro de uma frase do Edu Cordeiro, “ele nasceu! ele é lindo, fofo, inacreditável”.
Inacreditável. Inexplicável.

Só tem um jeito de estar grávida, que é engravidando. É igual tentar descrever como é estar apaixonada. Ou descrever como é compartilhar uma refeição maravilhosa.   
É igual pra todo mundo, e diferente pra todo mundo.
Eu sinto paz. Sinto que o medo ficou pra trás em algum lugar nessa floresta, enquanto eu tomava banho de cachoeira ou chupava uma manga. 
É claro que às vezes aparecem uns lobos ou umas pedras, ou chove, ou o sapato se divide ao meio, mas tenho minhas artimanhas e talvez pela primeira vez na vida elas nada tenham a ver com fugas e esconderijos.

A gravidez, obviamente, te ensina a esperar. São 10 meses contando sua vida em semanas, e esperando o que vai acontecer de novidade na seguinte.
Eu acho que logo no começo você percebe que tem duas escolhas: temer ou confiar.
A gravidez é um prato cheio para potencializar medos e colorir inseguranças, simplesmente  porque nunca na vida você esteve tão longe do controle de uma situação. Tem um bebê do tamanho de um gergelim dentro da sua barriga, ele vai se desenvolver, crescer, escolher a hora em que vai sair de você. E não há nada que você possa fazer sobre isso. E aí, vai temer ou confiar?

No começo, oscilei entre confiar e temer. Até que percebi que não ia conseguir curtir a gravidez se continuasse oscilando. E, de um jeito inexplicável, comecei a confiar plenamente nesse processo maravilhoso de preparar uma pessoa.
Tomei algumas medidas práticas, como diminuir a longa lista de restrições alimentares imposta pelo obstetra a dois ou três itens e parei de tirar a rúcula de dentro do sanduíche da lanchonete por medo de contaminação.
Não liguei pra quem me aconselhou a cortar açúcar e comi um docinho todos os dias com parcimônia, alguns dias com liberdade total.
Senti que a melhor coisa que eu poderia fazer pelo meu filho era me sentir feliz, e não seria feliz com tantos receios e tantas privações. 
Mas a decisão mais importante, que foi relaxar o coração, não tem lá muita explicação.
Relaxei tanto que me esqueci de passar com a obstetra em julho. “Tudo bem! Mas não faça mais isso, ok? É importante a gente te examinar todo mês”.

Fui percebendo que não precisava me apegar a uma obstetra, a um livro, a um enxoval, a nada. Só preciso me sentir bem, saudável e conectada ao meu filho. Do nosso jeito.
Perguntam se converso bastante com ele, se estamos ouvindo música clássica, se estou lendo histórias.
Não, não e não. Quer dizer, do nosso jeito, fazemos essas três coisas. E acho que é isso que as pessoas dizem que é achar a sua conexão. Ela com certeza não vai ser igual a minha.

Eu e o Bento somos assim:
Todo dia, quando acordo, falo “Bom dia, Bento!”, e passo a mão na barriga. Se ele não chuta na hora – “Bentô-ô, Bentolino, Bentóviski?”, dali a alguns segundos lá vem mexida. Assim começamos o nosso dia, acordando juntos.
Ao longo do dia ele se mexe várias vezes, algumas vezes dá uns chutes (ou o que quer que seja essa movimentação) mais fortes, geralmente nas laterais, que me deixam extasiada. Faz cócegas, faz felicidade.
À tarde, no trabalho, ele costuma mexer bastante, e eu não posso compartilhar com ninguém ou dizer em voz alta “Oi, meu amor!”, mas passo a mão na barriga e estamos entendidos.
E agora a gente está entrando num novo e encantador estágio de comunicação: se eu fico um tempinho passando a mão na barriga, ele responde com chutinhos.
À noite, como eu acho que é comum a todas as grávidas, é quando o balé se intensifica. Não sei se prefiro jantar porque é hora de comer a comida maravilhosa do pai dele, ou se é porque eu sei que em instantes eu e Bento vamos conversar muito.
Tenho a sorte de ser casada com um homem que me alimenta. 
De muitas coisas.
Na hora de dormir, damos os dois boa noite ao Bento, que permanece chutando as costas do pai até que a gente perca a noção do tempo e adormeça.

Faltam dois meses e meio. Ainda tem estrada.
Ainda tem muito que confiar, cuidar, viver.
Muitas augustas pra descer, muito corpo pra alongar, muita barriga pra crescer e caixa pra desempacotar.
Mas é uma delícia tão cremosa, como diz seu nonno, a gente ter chegado até aqui juntos, B., que às vezes eu me pergunto: quem está te preparando sou eu, ou quem está me preparando é você?

foto: eu, você e nosso fusca Barbecue. Créditos: Pai 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

o adeus ao bê-ene


Quando nos mudamos para o número 200 e pouco da rua João Miguel Jarra logo percebemos que nosso vizinho de frente, o da porta de madeira com a imagem de Nossa Senhora, era o morador mais importante do prédio.
Jota o achou um tipo esquisito com quem não se deve ter uma relação. 
Todo conhecido nosso sempre perguntava "e aquele senhor que não sai de lá de baixo?". Senhor não porque apesar de ter idade avançada ele misteriosamente não tem cara de velho, tampouco de jovem.
Mas o fato é que ele nunca me causou estranhamento, e gostei mais ainda dele quando soube que residia ali há 30 anos, quando ainda estava fresca no edifício a memória de seus dias de BNH. 
Cuidava das plantas do prédio, foi ele quem semeou a maior parte delas. Se você olhar pros outros predinhos não vai ver tantas flores e tão bonitas como naquele
Dama da noite, goiabeira, mangueira, flores do campo
Diariamente alimentava os passarinhos com mamão e restos de fruta  
Cuidava também da mesa e das cadeiras
e do peculiar anãozinho que usava um relógio de verdade
O anãozinho muda de cor a cada bimestre, e hoje eu penso por que é que não fotografei todas as suas roupas, daria um magnífico ensaio!
Passava a maior parte do tempo lustrando sua moto lá embaixo
e tinha uma coisa irritante a qual nos habitamos: fumava muito, o tempo todo, inclusive nas escadas, sempre cheias de cinzas.
Era uma espécie de protetor do prédio, logo eu saquei. E que sorte a nossa: nosso vizinho de frente!
Vanderlei foi mesmo um protetor pra gente nesses mais de três anos em que moramos lá. 
Com o estreitar da relação, o multiplicar dos bom dias e boas noites, fomos pegando alguma intimidade e, eu claro, a mais folgada do casal, comecei a pedir a ele alguns favores. 
"Vanderlei, minha enteada vem hoje e tá sem chave, posso deixar com você?", "Vanderlei, vem o cara da NET e não vamos conseguir estar em casa, pode abrir pra ele?"
Sem contar que ele intermediou a venda do fusca do Matheus, um dos melhores negócios que já fizemos 
Uma vez dei uma flor em agradecimento. Mas acho que, apesar de ter sido gesto verdadeiro, flores de gratidão são muito protocolares, os obrigadas mais afetuosos são aqueles que vêm fora de época, como a gaiola de hamster que a gente achou na caçamba da Mourato e deu de presente pra ele e hoje é onde se alimentam os sabiás, os sanhaços e também as pombas
Não consigo imaginar como teria sido nossa vida lá sem o Seu Vanderlei. 
Mais do que ajudar a resolver pequenos pepinos do dia a dia, Vanderlei humanizou a nossa São Paulo, acaipirou nossa São Paulo. 
Ele fez com que recuperássemos a confiança em quem mora ao lado, hoje sabemos que contar com o vizinho não é coisa exclusiva do interior, não é uma utopia.
Na quinta-feira de manhã, voltando da Márcia, passei na frente do velho predinho e o coração apertou pela primeira vez desde a mudança. A janela, vazia, sem a cortina de renda filé de Maceió, as luzes apagadas, nenhuma gata à espreita. Ia seguindo quando vi que ele estava lá embaixo, fumando. Atravessei a rua. 
"Seu Vanderlei, bom dia! A Comgás passou aqui ontem pra desligar o gás?"
"Passou"
"Eles tocaram no seu apartamento, você assinou o termo pra gente?"
"Assinei"
"Nossa, seu Vanderlei, nem sei como te agradecer. Muito obrigada por tudo. Passa lá em casa pra tomar um café?"
"Qualquer dia"
(no dia seguinte da mudança, Jota viu o Vanderlei passar na nossa nova rua, o convidou para entrar, mas ele respondeu "qualquer dia")
Estava já de costas quando ele disse: 
"É pra quando? O bebê"
(entendi de primeira, só então percebi como acabei desenvolvendo uma habilidade de compreender o que ele diz)
"Ah! Fim do ano, dezembro ou janeiro"
"É menino ou menina?"
"É um menino!"
Ah, seu Vanderlei, ah predinho nosso!
*
A filha do Vanderlei disse assim, quando nos despedimos dela: 
"Que pena, os bons sempre vão"
Mas o melhor sempre fica. 

foto: anãozinho, com um de seus looks 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

escultura de bebê


*A foto, o Jota achou e me mandou de presente hoje


domingo, 4 de agosto de 2013

louça, café velho e vovó Carlotinha


Hoje, lavando o bule no fim da manhã, o cheiro do resto de café me transportou até os lanches de quarta na casa da minha bisavó Carlotinha.
toda quarta-feira às 17h30 vovó Teresinha e seu motorista nos buscavam em seu Santana azul e íamos os primos todos no porta-malas chupando chiclete e falando alto, e o som do carro em alto volume tocando alguma música do tipo Anna Júlia.
lembro de ficar impressionada com a tolerância da vovó em relação àquelas músicas, como ela as suportava? "eu não ligo, eu gosto", ela dizia.
Vovó Carlotinha - nunca chamamos nossa bisavó de bisa, era vó também - morava numa casa na rua Groenlândia, com um longo quintal que tinha no fundão uma porta de garagem dessas que não existem mais. Era terrivelmente barulhenta e nossa maior diversão era sair correndo e jogar o corpo contra elas. Fazia um barulho que era uma mistura de trem correndo no trilho com secador ligado & caminhão triturando lixo. 
Cada vez que alguém pegava impulso e saía correndo em direção ao portão todos os outros tapavam os ouvidos porque o barulho era realmente horroroso. Era muito legal.
E o fruto laranja proibido? Como queríamos comê-los. O quintal era cheio daquelas arvorinhas e sempre os sertanejos dos frutos calhavam de dar, ah! que se amora ou jabuticaba dessem nessa frequência imagina a maravilha que seria. Mas não, eram frutos proibidos e venenosos, ai de quem comer, e as mães acho que repetiam isso pra gente todas as quartas.
Em vez das frutinhas, comíamos pão de queijo. Não quaisquer pães de queijos. Os piores, ressalto, OS PIORES pães de queijo de que se tem notícia. Eram duros feito uma cratera, solados, queimados embaixo, com gosto acentuado de polvilho e sempre, SEMPRE estavam frios. Mas a gente os amava. Eles tinham o cheiro da casa da vovó Carlotinha. Eles e o café com leite que nesta época eu tomava bem escuro, sem saber como gostoso mesmo era do claro.
Gostava de subir ao quarto da vovozinha e observar como tudo, absolutamente tudo ali naquela casa, era de um tempo que ficara para trás.
Vovó Carlotinha era o ser mais doce que você pode imaginar. Diminuta e curvada, falava pouco, em voz baixa e obrigatoriamente sorrindo. Nunca a vi contrariada, era uma espécie de anjo. Eu achava lindo seus cabelos grisalhos presos num coque e queria que fossem longos, mas vovó Teresinha dizia que pessoas velhas não tinham cabelos compridos.
Os sofás da casa eram peculiares, grandes bancos com almofadas duras. Quer dizer, algumas duras, outras moles. 
Meu deus, acabo de me lembrar, fazíamos cabanas com elas! TODAS as quartas! Pobre Rita, devia passar horas arrumando a casa depois da passagem daqueles pequenos furacões...
Nós éramos livres, definitivamente crianças livres.
Não me lembro de ouvir discursos chatos das avós e tias, do tipo "não baguncem muito, não comam pão de queijo demais". Como pode ser boa a infância depois que os anos desaparecem com seus fantasmas! 

A casa da vovó Carlotinha na rua Groenlândia foi reformada, e hoje moram ali umas modelos (fonte Luiza Laloni). Mas não há uma vez que eu passe lá sem me lembrar. Das quartas cheirando a café com leite escuro e pão de queijo duro, frutinhas proibidas e portões barulhentos, primos e primas, e muitas mulheres mães, amorosas mulheres, eis o que somos.
E como disseram ontem: "seja apenas o que pode ser".
*
Mas não é engraçado como o cheiro de um café velho escorrendo na pia pode fazer a gente voltar à casa da bisavó?

foto: vovó Teresinha e vovó Carlotinha, no aniversário de 1 ano da Bia









quinta-feira, 25 de julho de 2013

nossa segunda música


Hoje, no ônibus, descobri nossa segunda música. Every Breath You Take apareceu no meio de um monte de músicas que eu não conhecia e no instante em que começou a tocar eu a reconheci como nossa, como reconheci Como É Grande o Meu Amor Por Você naquele dia em que soubemos que você estava a caminho.

Os olhos atravessaram a Faria Lima molhados e o dedo teimava em apertar o botão de voltar quando a música chegava ao fim e outra se iniciava. É muito mais gostoso fazer isto, pensei, ouvir um pedacinho da outra música e voltar para a preferida, do que botar logo no repeat. 

Assim a gente experimenta de novo e de novo aquela sensação de susto bom de montanha russa quando ouve as primeiras batidas. O repeat é uma cilada que captura a música e engole a surpresa. 

É a diferença entre parar todos os dias e escolher fazer uma mesma coisa todos os dias, e determinar no primeiro dia que você vai fazer a mesma coisa pelos próximos 30, sem se perguntar diariamente se é isto mesmo que você quer.

"Como é que nunca falaram que Every Breath You Take é uma música de mãe para filho?", me passou pela cabeça algumas vezes. Também me passou pela cabeça fazer carinho na barriga porque eu estava de fone e você não estava ouvindo junto comigo, e eu queria te dizer que tinha algo muito bom acontecendo. 

Mas só consegui ficar parada, eu e a vizinha senhora japonesa e em pé o senhor que não iria se sentar no lugar da moça "porque eu sou homem". Ouvi Every Breath You Take por 50 minutosde uma tribo à outra, da Macunis até a Nhambiquaras.


Every breath you take
Every move you make
Every bond you break
Every step you take
I'll be watching you

Every single day
Every word you say
Every game you play
Every night you stay
I'll be watching you

Oh, can't you see
You belong to me
How my poor heart aches
With every step you take

(...)

Cada suspiro, cada passo, cada sorriso, cada palavra.
*
A parte do "you belong to be" é brincadeirinha, tá? ;)
*
Ou é verdade, mas só por mais cinco meses. Vou ali aproveitar e já volto!



terça-feira, 9 de julho de 2013

Ao bairro dos pássaros



Não quero fazer apologia à pobreza nem discursar contra o sujeito que carrega uma bolsa com um belo excedente de recursos. Não. Só quero mesmo falar sobre os efeitos positivos da grana curta na minha particular vida (porque tem os heavy metal também). 
Nas últimas semanas a grana esteve curta. E, quando a grana está curta, a gente se vê obrigado a mudar a diversão de endereço. E quando a grana está curta e você tem dores de cabeça, a lista de diversões encolhe mais ainda.
Elimine logo as três principais: cinema, tv e internet. Cinema não dá pro bolso, tv e internet só se for em doses homeopáticas, senão a cabeça reclama. Depois elimine as visitas frequentes a cafés e restaurantes. 
Então, você faz o quê? Bom, você fica bastante tempo no sofá pensando, e de tanto fazer isso desenvolve a habilidade de ficar bastante tempo no sofá sem pensar em... nada.
Você passa muito tempo observando o ritmo de suas gatas, o comportamento de cada uma. E experimenta o prazer máximo ao vê-las brincar de correr uma atrás da outra ou comer ou beber água. 
Parece bobo? As melhores coisas da vida são bobas mesmo...
Você conversa com ele, cozinha pra ele e observa ele cozinhar pra você, como ele faz isso naturalmente bem. Espera ele trazer o pão da padaria com menos ansiedade do que no mês passado e mais do que no mês que vem. Porque você sabe que a ansiedade vai ter cada vez menos espaço na sua vida. No abecedário das grávidas, ela está logo no comecinho, na letra A, e já estamos indo para o fim do começo do alfabeto.
E você lê livros. Não revistas femininas, porque a grana está curta e talvez nem te interessassem tanto agora. Você pega o novo Fante que já fora devidamente engolfado e resenhado por ele e está largado na mesa de centro há semanas, e começa a ler e não consegue mais parar. Em um dia e meio foi saciado, terminado e a louça lavada. Reproduzo um trecho:

"(...) 

 Quer seu jantar agora?

A berinjela cozida me transportou de volta à infância, quando elas custavam um níquel cada e eram um grande banquete, maravilhas globulares purpúreas, salientes, alegres e generosas, com seu rico sabor querendo encher nosso estômago, tão bonitas que me davam vontade de chorar.

As finas fatias de vitela me obrigaram a conter outra vez as lágrimas enquanto eu as comia acompanhados do magnífico vinho Musso das montanhas vizinhas. E os nhoques preparados na manteiga e no leite por fim detonaram o processo. Cobri os olhos sobre o prato e chorei de alegria, gorgolejando como no ventre de minha mãe, tão doces e pacíficas, enchendo minha boca de vida para sempre. Ela viu meus olhos úmidos, pois não havia como os esconder.

 Tem algo no ar  falei.  Amoníaco, talvez? Está queimando meus olhos.
 É amoníaco. Esfreguei o chão com ele.
 Então é isso. Amoníaco. 
 Seu pai odeia amoníaco. Não me deixa usar na máquina de lavar roupa.
 É verdade?
 Sabe do que ele gosta?
 Diga.
 Banho de espuma.

(...)"

A irmandade da uva, de John Fante, é um livro sobre um entediado escritor de best-seller que só para de masturbar o próprio ego e subir no próximo ônibus sempre que algo lhe foge ao roteiro quando ajuda o pai pedreiro a realizar uma obra despropositada. Voltando a conviver com o que há de pior e mais feio nele, volta a tratar a si mesmo com sinceridade.

A descrição do "vinho de geladeira" gelado e insubstituível de Angelo Musso fez uma mulher grávida que há meses enjoava só de pensar em tomar vinho desejar febrilmente um gole dessa maravilha da Califórnia.

Retomar o hábito da boa leitura, aprender a aquietar e fazer absolutamente nada, ver pouca tv, dormir cedo e acordar cedo, almoçar com ele sem pressa nenhuma, baldear por blogs de maternidade sem pressa nenhuma...Foi uma bela travessia.

Sabe o que mais tem sido ótimo? Deixar de gastar pequenas fortunas em cafés e restaurantes para comer mediocremente. É muito melhor em casa. Amigos, usemos mais nossas próprias casas!

Mas, como o ponteiro do relógio não para de andar e nem a barriga de crescer, é chegada a hora de movimentar. Já não preciso mais das tardes para fazer bolos, eles já se condensaram à rotina. Jovelina está plenamente adaptada à casa e mais saudável do que nunca. Meu pêndulo sai da zona de muita liberdade e pede um pouco de segurança. 

Como explica Zygmunt Bauman, passamos a vida tentando equacionar segurança e liberdade. Quanto mais se tem de uma, menos se tem da outra - mas a gente quer as duas. "O problema é que ninguém na História, nem no planeta, achou a fórmula de ouro, a mistura perfeita de segurança e liberdade. Cada vez que você tem mais segurança você entrega um pouco de sua liberdade. Não há outra maneira. Cada vez que você tem mais liberdade você entrega parte da sua segurança".

Então amanhã, de mochila verde musgo com marmita dentro e barriga de grávida por vir a ser, subo num ônibus Metrô Santa Cruz e desembarco no bairro dos pássaros, e assim deve ser por um tempo. Se eles me chamam, eu vou!



foto: brincadeira em movimento, por claudia laloni/agência mãe 




segunda-feira, 24 de junho de 2013

Eu prefiro. E você?


"Prefiro filmes.
Prefiro gatos.
Prefiro os carvalhos ao longo de Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievsky.
Prefiro-me gostando de indivíduos
a mim mesma amando a humanidade.
Prefiro manter uma agulha e linha à mão, em caso de precisão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não suster
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro falar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as antigas bem alinhadas ilustrações.
Prefiro o absurdo de escrever poemas
ao absurdo de não escrever poemas.
Prefiro, quando o amor diz respeito, aniversários inespecíficos
que podem ser comemorados todos os dias.
Prefiro moralistas
que me prometem nada.
Prefiro bondade astuta ao tipo super confiante.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro conquistados a países conquistadores.
Prefiro ter algumas reservas.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fadas dos Grimms às primeiras páginas dos jornais.

Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro cães com caudas descortadas.
Prefiro os olhos claros, uma vez que os meus são escuros.
Prefiro gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui a muitas coisas que também deixei não ditas.
Prefiro os zeros à solta àqueles alinhados atrás de uma cifra.
Prefiro o tempo de insetos ao tempo de estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo e quando.
Eu prefiro manter em mente a possibilidade de que a existência tem sua própria razão de ser."

*Possibilidades, de Wislawa Szymborska

Foto: Jotita 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

casas


Nos últimos meses, temos flertado com algumas casas 
Hoje, depois de uma visita, penso que a dinâmica de procurar um novo lar é bem parecida com a do flerte humano
Tem casa que a gente namora pela foto e quando conhece pessoalmente nem parece a mesma do retrato. 
O oposto também ocorre: o dono da primeira casa que visitamos conseguiu ocultar no álbum de fotos sua parte mais bonita, um terraço inteiramente tomado por manjericão. Aposto que ele não via a hora de cortar aquele manjericão descontrolado que inutilizava seu quintal. Ainda me alegra a imagem daquele terraço de manjericão.
*
Toda casa, naturalmente, visitamos acreditando que pode ser a última. A gente pode até se enganar, mas a verdade é que sabe logo quando não. Às vezes eu não preciso nem passar da garagem.
No começo eu tinha uma lista grande de expectativas, aos poucos fui abandonando todas elas
Percebi que o importante pra gente, no fim, é que a casa seja original e tenha um quintal
Porque sem alma e sem flor é ruim de viver, né? 
Eu sei, no entanto, que quando for a casa certa na hora certa, pode até ser do tipo reformada e não ter quintal
Porque o que faz a gente se apaixonar por alguém (e por uma casa) é quase sempre o imprevisto, esse elemento que a cabeça não consegue explicar, mas o coração reconhece na hora
*
Nesta fase do flertar com as casas, tenho notado como é interessante a gente se relacionar com outras antes de escolher a nossa.
Hoje eu percebi que acabamos morando um pouquinho em toda casa que visitamos
Na casa do Alto da Lapa, por exemplo, nós demos muitas festas, e as tardes de domingo, cheias de garotos andando de bicicleta na rua, eram as mais gostosas; na casa da Lapa, colocamos uma grande mesa de madeira no terraço e fizemos muitos churrascos temperados com limão rosa do jardim, nos sentíamos em Ibiúna; na casa da Vila Romana, fazíamos piqueniques na praça, inauguramos nosso escritório e devolvemos a vida a um quintal de cimento.
Ao imaginar uma vida em cada casa, a gente reafirma alguns desejos, descarta outros e descobre novas e improváveis vontades 
*
Nas visitas, ele sempre passa um tempo a mais na janela, eu na cozinha. Quando um delira, escondendo os defeitos da casa porque está seduzido por uma de suas qualidades, o outro pesa e pondera.
*
Enquanto a nova casa não aparece, continua sendo certa a nossa. Tenho a impressão de que ela está vivendo seu auge: nunca esteve tão feliz, aconchegante e preenchida. 
Paredes que durante muito tempo permaneceram vazias de repente ganharam cores mexicanas e fotos em série. A fruteira nunca fica sem laranjas e bananas, no forno sempre há um resto de bolo. A cama presente da avó parece ter finalmente amaciado. 
Prestes a deixá-la, nunca amamos tanto a nossa casa.
*
Não acredito em casas com decoração de revista, não acredito em paredes só com molduras brancas e em pias muito limpas. 
Acredito em casas que estão sempre com um tapete meio sujo e que não escondem seus varais. 
Acredito em casas que começam vazias e, no mesmo compasso de seus moradores, vão ficando cheias. Não porque precisam, mas porque não têm opção, estão vivas.
*
Nos últimos meses, além de procurar uma casa para mim, me transformei na casa de outra pessoa. Há 12 semanas e alguns dias, tem um bebê morando na minha barriga!
Ele chegou me ensinando a saborear a vida em semanas, pedindo silêncio & calma, querendo leite, pêssego e purê de batata. 
Ele chegou na semana em que a gente oficializou nossa união, quinze dias depois de eu cortar o cabelo
Ele chegou me ensinando a ser engenheira, arquiteta, pedreira, eletricista, chefe de obra e tudo o mais que se precisa ser para erguer um edifício  
"Ela é jornalista", alguém me apresenta dia desses, e eu balanço afirmativamente a cabeça, mas tenho vontade de responder "sou grávida!". Me perguntam como estão os frilas e eu respondo "estou grávida!". A obstetra me disse que a partir da vigésima semana, quando começar a sentir o bebê mexer, é que vou me sentir realmente grávida. E eu só consigo pensar: "Mais?".


*foto: a sala da nossa casa, por Paula Desgualdo

** texto com óbvio débito, expressão que alguém já usou, ao texto "Aos noivos", do blog yRodar.








segunda-feira, 13 de maio de 2013

Jovelina Pérola Negra



Jovelina é minha bebê gata.
Ela é carioca e nasceu nas imediações de Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, nos primeiros dias de outubro de 2012.
Foi o Jota quem a trouxe para nós, de avião, em novembro do ano passado. Nós dois vimos uma foto dela no Facebook, era toda preta e tinha apenas uma pata amarela listrada.
Era feinha e tremendamente charmosa, como é até hoje.
Conseguiu embarcar no último minuto, por um tremendo esforço conjunto, e sorte. Faltavam 10 minutos para o avião sair quando a Tam liberou o Jota e a Jovi.

Desde que ela veio morar conosco, eu e ela temos passado muito tempo juntas.
À tarde eu fico observando a Jovelina e a Abacaxi dormindo. Poucas coisas tiram seu sono: o barulhinho de ração sendo despejada na tigela, uma carta enfiada no vão entre a parede e a porta, uma visita.

O Jota chama a Jovi de Dóri, por causa daquela peixinha esquecida do Nemo: é que ela parece que se esquece que já comeu, e toda vez que a gente vai para a cozinha, não importa se tenha acabado de devorar um potinho de ração, ela chora pra comer mais.
Eu resisto, mas ele sempre cede. Coloca pelo menos duas ou três bolinhas de novo.

Por outro lado, sou eu quem deixa as gatas comerem queijos, iogurte, bolo, peixe, presunto. Tudo em micro doses, e só muito de vez em quando.
Eu acredito que minhas gatas sejam mais felizes por causa dessa minha atitude indisciplinadora.
Se elas não tivessem paladar como é que se explica o fato de a Abacaxi nem ligar se tem sashimi na mesa,  e a Jovelina enlouquecer diante de cubinhos de salmão cru? Mas é a Abaca quem não pode sentir cheiro de sorvete ou iogurte e lambe o pote até não sobrar nada, já a Jovi não dá a mínima.

Jovelina é tão desencanada que dormiu nos 45 minutos de voo que separam Rio de Janeiro e São Paulo. Fato que até nos deixou um pouco preocupados.
Quando me abaixei para vê-la dentro da caixinha, tão miúda, e nos olhamos pela primeira vez, nesse instante eu a amei.

Ela é desencanada, mas é inquieta.

Durante oito dias, morou dentro da caixinha no banheiro, para a irmã Abacaxi se acostumar com a sua presença. Até o quinto dia viveu sem se queixar. No sexto dia passou a miar toda vez que escutava as nossas vozes, como quem diz já chega, quero meu espaço.

No oitavo dia saiu, deixando por vários dias no banheiro seu perfume de violeta, que se eu fosse arriscar um cheiro e uma flor seriam esses. A Jé até perguntou "nossa, que perfumado que tá o seu banheiro, o que você passou?", eu disse que era o cheiro da Jovi e ela não acreditou.

E a Pequena Gata Preta (ou Bereba, ou Minhoca Preta) deu um susto em todos nós mês passado quando estava prestes a ser castrada. Jovelina pode ter meses, ou dias de vida, nós ouvimos. No fim, graças ao deus dos felinos, foi só um engano e ela estava plenamente saudável - como mãe e pai suspeitavam desde o início. Mas por conta dessa tutameia adiamos sua castração e o que se sucedeu foi que Jovelina agora tem tetas e ao que parece está em seu primeiro cio. 

Jovelina desde sempre me pareceu habitar uma espécie de espaço zen.
Nunca respondeu às rosnadas da Abacaxi com mais rosnadas
Também não responde emocionalmente aos carinhos da irmã, que cuida dela como um mãe
Não parece se incomodar tanto com as pulgas
Jovelina está, numa nice
Ama carinho, se ela está no seu colo e você de repente para de acarinhá-la, ela levanta a cabeça e faz "éééh", pra você continuar.
Ama colo, como eu sonhei que a Abaca amasse
Abaca nunca amou, é bastante original para uma felina na maneira de demonstrar seu amor: com lambidas diárias na minha mão, na minha bochecha, no meu nariz
Eu percebo que a Jovi fica olhando pra ela de maneira esquisita, quando me lambe, como se dissesse "mas nós não fazemos isso"
Às vezes eu acho que a Abacaxi é a criança, a Jovelina é a velhinha
Às vezes eu acho que a Abacaxi precisa mais da gente do que a Jovelina


Todos os dias eu as aperto (até demais), beijo (até demais) e digo a elas o quanto eu as amo e sou feliz por viver com elas.


Jovi, obrigada por ter pego aquele voo!


foto: em primeiro plano, Jovelina; no fundo sua amiga Verônica