segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

d. Vera da João Tibiriçá


O Salmo 23 apregoa: o Senhor é o meu pastor, nada me faltará.
Eu conheci a dona Vera na última sexta-feira, quando caminhava até a casa de uma amiga que mora na João Tibiriçá, na City Lapa.
Eu sempre me atraso quando vou à casa dela porque esqueço que o trem é mais vagaroso que o metrô.
Mas, naquele dia, decidi sair uma hora antes, o que permitiu que eu me demorasse muitos minutos com a dona Vera.
Foi ela quem me chamou, com a pergunta: "Você acha que tudo bem eu pendurar um varal nessa praça da frente?". Eu acho que sim, respondi. Foi como dar corda numa caixinha de música: ela começou a falar sem parar sem nenhuma parada para reabastecimento de fôlego.
Não consegui compreender as histórias, ela mesma sabia que estava misturando ingredientes demais ao mesmo tempo, mas não conseguia diminuir a velocidade da batedeira. "Eu estou com a fala enrolada", observou mais de uma vez.
Disse algo sobre ter sido expulsa da casa do patrão, no número 2006 daquela rua; esbravejou contra Kassab, "que me tirou tudo, casa, roupa, sapato, e esse novo prefeito também"; falou sobre os vizinhos, uma tal senhora negra com uma "bunda desse tamanho" que não quis namorar um cara porque ele era magrelo demais, preferiu um homem negro que também tinha uma bunda enorme, não adiantava que lhe falasse que "o magro é bonito como Jesus na cruz".
"Eu tenho 65 anos, mas estou com cara de 85", afirmou. Eu tirei da bolsa uma nécessaire e lhe dei um blush. "Passe nas bochechas e se sentirá mais bonita". Ela aceitou sem ligar muito e pediu que eu lhe desse meu espelho.
D. Vera mora na João Tibiriçá há dois meses, em frente a uma casa bem perto da estação de trem Domingos de Moraes. Teria sido expulsa da casa da irmã por um "sobrinho maconheiro".
Quando eu pedi para fazer seu retrato, fechou os olhos, esperando o flash.
Quis sair segurando o pacote de bolacha que uma senhora lhe deu.
Quis ver a foto e fazer outra porque o avental tinha saído meio torto.
Me mostrou a saia que usava por debaixo da saia, comprada certa vez por R$ 15.
"Você tem filha mulher? Não? Quando tiver, vem aqui que eu faço uma roupa pra ela".
Na volta, caminhando com o Tiaguinho do outro lado da rua de volta até a estação, é possível que tenha passado por ela sem perceber, mas não a encontrei. Poderia ter sido tudo fruto da minha imaginação não fosse a confirmação da Neide de que sim, há uma senhora morando há meses por lá. Teria então d. Vera sido naquela exata amanhã expulsa dali?
Só agora aumentando a foto é que vi, lá atrás na barraca improvisada ela pendurou um papel com o Salmo 23, uma das orações mais poderosas para afastar perigos e perseguições. Como você adivinhou, d. Vera?
Eu dei a ela um espelho e ganhei um espelho.






Um comentário:

Anônimo disse...

Saudade de ler teus textos. Que coisa linda, Nana.