sexta-feira, 4 de outubro de 2013

o adeus ao bê-ene


Quando nos mudamos para o número 200 e pouco da rua João Miguel Jarra logo percebemos que nosso vizinho de frente, o da porta de madeira com a imagem de Nossa Senhora, era o morador mais importante do prédio.
Jota o achou um tipo esquisito com quem não se deve ter uma relação. 
Todo conhecido nosso sempre perguntava "e aquele senhor que não sai de lá de baixo?". Senhor não porque apesar de ter idade avançada ele misteriosamente não tem cara de velho, tampouco de jovem.
Mas o fato é que ele nunca me causou estranhamento, e gostei mais ainda dele quando soube que residia ali há 30 anos, quando ainda estava fresca no edifício a memória de seus dias de BNH. 
Cuidava das plantas do prédio, foi ele quem semeou a maior parte delas. Se você olhar pros outros predinhos não vai ver tantas flores e tão bonitas como naquele
Dama da noite, goiabeira, mangueira, flores do campo
Diariamente alimentava os passarinhos com mamão e restos de fruta  
Cuidava também da mesa e das cadeiras
e do peculiar anãozinho que usava um relógio de verdade
O anãozinho muda de cor a cada bimestre, e hoje eu penso por que é que não fotografei todas as suas roupas, daria um magnífico ensaio!
Passava a maior parte do tempo lustrando sua moto lá embaixo
e tinha uma coisa irritante a qual nos habitamos: fumava muito, o tempo todo, inclusive nas escadas, sempre cheias de cinzas.
Era uma espécie de protetor do prédio, logo eu saquei. E que sorte a nossa: nosso vizinho de frente!
Vanderlei foi mesmo um protetor pra gente nesses mais de três anos em que moramos lá. 
Com o estreitar da relação, o multiplicar dos bom dias e boas noites, fomos pegando alguma intimidade e, eu claro, a mais folgada do casal, comecei a pedir a ele alguns favores. 
"Vanderlei, minha enteada vem hoje e tá sem chave, posso deixar com você?", "Vanderlei, vem o cara da NET e não vamos conseguir estar em casa, pode abrir pra ele?"
Sem contar que ele intermediou a venda do fusca do Matheus, um dos melhores negócios que já fizemos 
Uma vez dei uma flor em agradecimento. Mas acho que, apesar de ter sido gesto verdadeiro, flores de gratidão são muito protocolares, os obrigadas mais afetuosos são aqueles que vêm fora de época, como a gaiola de hamster que a gente achou na caçamba da Mourato e deu de presente pra ele e hoje é onde se alimentam os sabiás, os sanhaços e também as pombas
Não consigo imaginar como teria sido nossa vida lá sem o Seu Vanderlei. 
Mais do que ajudar a resolver pequenos pepinos do dia a dia, Vanderlei humanizou a nossa São Paulo, acaipirou nossa São Paulo. 
Ele fez com que recuperássemos a confiança em quem mora ao lado, hoje sabemos que contar com o vizinho não é coisa exclusiva do interior, não é uma utopia.
Na quinta-feira de manhã, voltando da Márcia, passei na frente do velho predinho e o coração apertou pela primeira vez desde a mudança. A janela, vazia, sem a cortina de renda filé de Maceió, as luzes apagadas, nenhuma gata à espreita. Ia seguindo quando vi que ele estava lá embaixo, fumando. Atravessei a rua. 
"Seu Vanderlei, bom dia! A Comgás passou aqui ontem pra desligar o gás?"
"Passou"
"Eles tocaram no seu apartamento, você assinou o termo pra gente?"
"Assinei"
"Nossa, seu Vanderlei, nem sei como te agradecer. Muito obrigada por tudo. Passa lá em casa pra tomar um café?"
"Qualquer dia"
(no dia seguinte da mudança, Jota viu o Vanderlei passar na nossa nova rua, o convidou para entrar, mas ele respondeu "qualquer dia")
Estava já de costas quando ele disse: 
"É pra quando? O bebê"
(entendi de primeira, só então percebi como acabei desenvolvendo uma habilidade de compreender o que ele diz)
"Ah! Fim do ano, dezembro ou janeiro"
"É menino ou menina?"
"É um menino!"
Ah, seu Vanderlei, ah predinho nosso!
*
A filha do Vanderlei disse assim, quando nos despedimos dela: 
"Que pena, os bons sempre vão"
Mas o melhor sempre fica. 

foto: anãozinho, com um de seus looks 

6 comentários:

el pájaro que come piedra disse...


quando a gente é feliz, tudo se encaixa

marcia micheli disse...

vem chegando o dia em que os bons serão os que ficam e, também, os que vão. vai ser um mundo bento.

pó disse...

tchau, bê-ene, cuide bem do vanderlei!

Unknown disse...

Nana linda e merecida homenagem! Mamae

Unknown disse...

Nana linda e merecida homenagem! Mamae

nana tucci disse...

Márcia Micheli amada, vai ser um mundo Bento! <3
Isso aí, Pózinha, que lo cuide!
Passarinho que come pedra, é vero amore mio!